Mundo das Palavras

Que pena! Michael Jackson não era japonês

Não poderia ter sido menos intenso o horror provocado, em muitos países, por aquela declaração do antigo médico de Michael Jackson, Conrad Murray, segundo a qual o artista foi castrado quimicamente, na puberdade, numa imposição do pai dele, Joe Jackson. 
A declaração teria mesmo de causar espanto e indignação. Por duas razões, ambas independentes do fato de o médico ainda poder manter alguma autoridade para se pronunciar sobre o cantor, depois de ter sido condenado pela Justiça por seu assassinato involuntariamente, ocorrido quando lhe aplicou dose excessiva de analgésico. 
 
A primeira razão é a lembrança – ainda viva na memória de muitas pessoas – das queixas de Michael Jackson sobre o modo como ele foi tratado pelo pai, na sua meninice. 
 
A segunda é a pertinência do motivo apresentado pelo médico para a iniciativa da castração. A intenção de Joe teria sido manter a estridência infantil do timbre da voz do filho. Michael Jackson, de fato, conservou a estridência, até sua morte, aos 50 anos de idade. Numa repetição do que ocorreu, ao longo de três séculos, na Europa, com cantores adultos de coros eclesiásticos, nos quais a presença feminina foi vetada pela Igreja Católico. Todos eram ex-meninos pobres, castrados por cirurgiões leigos, que não dispunham de equipamentos adequados, por decisões de seus pais, que buscavam dar-lhes futuro melhor. 
 
Só na Itália, há registro de 4.000 casos destas castrações, aos 12 anos de idade. 
 
Assim, a decisão perversa atribuída a Joe – apenas, depois de sua morte, e ainda sujeita à confirmação – estaria amparada numa longa tradição de desumanidade supostamente bem-intencionada. 
 
Mas, de qualquer forma, não teria o menor sentido em outro contexto cultural, como o japonês. Na Japão jamais foi sequer cogitada a castração de homens que, como Michael Jackson, cantam e dançam, em manifestações artísticas criadas há mais de 600 anos, os teatros Nô e Kabuki, nos quais todos os papéis, inclusive, os femininos, são representados por atores. Estes atores, para alcançarem a felicidade da realização suprema, precisam interpretá-los bem, pois, nestes teatros, a mulher "é o personagem que tem por substância o espírito que afasta toda manifestação de violência", revela Sakae Murakami, no ensaio "O personagem feminino no Nô e no Kabuki". 
 
O mais novo destes gêneros artísticos é a Dança Butô. Foi criada no Pós-guerra, sob inspiração dos movimentos arte de vanguarda ocidentais como o expressionismo e o construtivismo. O dançarino butô usa a maquiagem pesada com o objetivo de neutralizar os gêneros sexuais. Kazuo Ohno, um dos criadores desta arte(o outro foi Tatasumi Hijikata) se tornou um mestre genial, admirado pelos críticos de Artes do Ocidente. Casado com Chie Nakagawa e pai de Yoshito Ono, Kazuo, nas suas apresentações, se vestia com roupas femininas como forma de realizar, na dança, o encontro de corpos de sexos diferentes, em homenagem à origem da vida. Um hábito que manteve até uma década antes de sua morte, com 103 anos de idade. Quando chegou aos 93, já com problema de visão, pouca força física, se apoiando em algo, depois sentado, apenas com as mãos, ele ainda dançou.
 
(Na ilustração: Kazuo Ohno)
 

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