Internacional

Um terço dos médicos deixa Venezuela e doenças erradicadas reaparecem

A crise econômica na Venezuela causou o colapso do sistema de saúde. A constatação é da Organização Pan-americana de Saúde (Opas) que, em documentos internos, alerta para a fuga de um a cada três médicos venezuelanos e para a explosão de novos casos de aids, malária, tuberculose, sarampo e difteria.

“Uma progressiva perda de capacidade operacional no sistema de saúde, nos últimos cinco anos, foi intensificada em 2017 e 2018, afetando o acesso ao tratamento gratuito e livre acesso a remédios”, afirmou um documento da Opas, o escritório regional da Organização Mundial de Saúde (OMS).

A informação foi utilizada como base de um encontro fechado realizado na semana passada em Washington para mapear a crise. Os dados batem de frente com a versão oficial, dada na ONU pelo chanceler venezuelano, Jorge Arreaza, que garantiu que a saúde gratuita estava garantida no país.

“Muitos hospitais estão operando em condições desafiadoras e a Federação Médica da Venezuela estima que 22 mil médicos deixaram o país”, diz o levantamento. Como havia 66 mil profissionais registrados, em 2014, significa que 1 a cada 3 foi embora, prejudicando tratamento intensivo, emergências e anestesia.

Estima-se que 6 mil técnicos de laboratórios e bioanalistas fizeram parte do êxodo de profissionais, além da fuga de 5 mil enfermeiras. Não por acaso, a Opas considera que o sistema de saúde da Venezuela está “sob estresse”. Além da mão de obra, falta também remédios e equipamentos. “Isso afetou a rede de saúde e sua capacidade de dar uma resposta a emergências e a epidemias.”

O colapso está registrado nas estatísticas. Enquanto o mundo reduziu o número de novos casos de contaminação da aids, entre 2010 e 2016, a Venezuela seguiu o caminho oposto e registrou 24% a mais de infecções no mesmo período. Ao mesmo tempo, o acesso aos remédios foi afetado: 69 mil dos 79,4 mil pacientes registrados para receber o coquetel de combate ao HIV na Venezuela não tiveram acesso ao medicamento em 2018.

“Não temos 15 dos 25 antirretrovirais. Os estoques acabaram há mais de nove meses”, indica o informe, que também constata a falta de remédios para tratar infecções causadas pelo HIV.

A tuberculose também ganhou novas proporções na Venezuela. Em 2014, foram registrados 6 mil casos. Para 2017, os dados preliminares já indicam 10,1 mil casos e uma tendência de alta para 2018. Outro problema é que foi constatado que o número de casos resistentes ao tratamento passou de 39 para 79 casos, entre 2014 e 2016.

“A falta de equipamentos para laboratórios tem afetado os diagnósticos de tuberculose”, constatou a Opas. Ela estima que dificilmente a Venezuela atinja as metas para acabar com a doença até 2030.

No caso da malária, os infectados mais que triplicaram em apenas três anos. Em 2015, 136 mil casos foram registrados no país. Um ano depois, a malária atingia 240,6 mil pessoas e, em 2017, já eram mais de 406 mil.

De acordo com a análise, essa explosão foi causada por uma migração de pessoas afetadas pela doença – que estavam no Estado de Bolívar – para outras regiões do país, além da falta de remédios e do abandono em parte dos programas de controle do vetor.

A ameaça, porém, é de uma continuidade do surto. “Um importante risco inclui o aumento dos casos de malária em áreas de países vizinhos, a emergência de linhagens resistentes ao remédio, a volta da transmissão local em áreas anteriormente livres da malária e o tratamento inadequado”, indicou a Opas.

A crise também já levou o sarampo para todos os 23 Estados do país e para a capital. Entre julho de 2017 e julho de 2018, 4,2 mil casos foram confirmados – 3,5 mil deles em 2018. Sessenta e duas mortes também foram registradas e casos foram exportados para Argentina, Brasil, Colômbia, Equador e Peru.

“A proliferação do vírus é explicada por vários favores, entre eles a cobertura de vacinação insuficiente, que deixa regiões com uma população vulnerável, sistemas de monitoramento inadequado, atrasos na implementação de medidas de controle, baixa capacidade de isolamento e movimento populacional nas fronteiras durante o período de incubação do vírus”, disse a Opas.

A difteria também voltou. O primeiro caso foi registrado em 2016 e, desde então, foram 1,9 mil casos e 168 mortes. No mês passado, o jornal O Estado de S. Paulo revelou dados mostrando que o índice de mortalidade infantil regrediu 40 anos. Depois de avanços, o índice de 2017 foi equivalente ao que se registrava na Venezuela em 1977.

Higiene

A dificuldade para encontrar produtos básicos fez com que mães dessem mamadeiras com água onde foi fervido macarrão e batata na esperança de nutrir seus bebês de alguma forma, já que não há mais leite na Venezuela. Isso foi em 2014, mas a médica Elaine Kummerow, de 27 anos, sabe que a situação atual é pior.

Ainda na faculdade, Elaine conviveu com a precariedade do sistema de saúde. Em Valencia, onde vivia, atendeu crianças que tiveram os pais assassinados e tinham de ser mantidas internadas, mesmo saudáveis, para não serem abandonadas.

Ela conta que atendeu pacientes no chão do hospital e usou garrafas de água de contrapeso para corrigir a fratura no ângulo certo. “Era comum faltar luz e, em uma das vezes, precisamos pedir para residentes fazerem ventilação manualmente nos pacientes, pois a mecânica não funcionava.”, explica Elaine, que mora no Brasil há três anos.

Com a falta de água, a higiene ficava precária e muitas cirurgias tinham de ser canceladas. “Certas emergências eram aceitas de maneira equivocada só para não deixarmos o paciente morrer na porta do hospital.”

A ONU e a OEA demonstram preocupação com a crise e pedem que o governo aceite a ajuda internacional. Em declaração conjunta, cinco especialistas destacaram em relatório que um dos sinais da crise é o fato de que 16 crianças morreram desde o começo do ano em um só hospital, em Lara, por conta das condições de higiene.

“Chegamos ao ápice da crise no sistema sanitário da Venezuela”, indicam os relatores Dainius Pras, Michel Forst, Philip Alston, Rosa Kornfeld-Matte e Soledad García Muñoz. “Isso é responsabilidade do Estado e o acesso à saúde está em deterioração. Os hospitais se transformaram em locais onde a vida das pessoas é colocada em risco.”

“É preocupante que crianças estejam morrendo de causas que poderiam ser prevenidas relacionadas ao estado das instalações de saúde, escassez de insumos, remédios e falta de limpeza”, afirmaram. Segundo ONU e OEA, quem denuncia o descaso é alvo de assédio e intimidação. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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