O Supremo Tribunal Federal virou um novo foco de oposição à Lava Jato. Uma mudança na correlação de forças entre os ministros e os desgastes internos da presidência de Luiz Fux, integrante da ala pró-Lava Jato, tornaram o cenário mais desfavorável ao legado da investigação. A operação já tinha sido abalada por uma ofensiva da cúpula da Procuradoria-Geral contra procuradores de Curitiba e, agora, enfrenta uma tentativa de aliados e inimigos políticos do presidente Jair Bolsonaro de "desconstruir" o ex-juiz Sérgio Moro.
A perda de apoio da Lava Jato na Suprema Corte ficou escancarada no julgamento da Segunda Turma que garantiu, no início deste mês, à defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva o acesso às mensagens privadas atribuídas a Moro e a procuradores da operação.
Se antes o relator da Lava Jato no STF, Edson Fachin, podia contar com o plenário para evitar derrotas na Segunda Turma (formada por cinco dos 11 integrantes da Corte), nem essa opção parece mais segura. É esse cálculo que tem sido feito por interlocutores de Fux, que ainda não decidiu quando vai levar a julgamento a discussão sobre a validade do material obtido por hackers e apreendido na Operação Spoofing. O grupo criminoso invadiu celulares de autoridades, como Moro e integrantes da força-tarefa em Curitiba.
O modelo de força-tarefa, integrada por procuradores com dedicação exclusiva às investigações, foi abandonado pela gestão de Augusto Aras na PGR. "Para mim, a Lava Jato não representa uma operação específica, mas o despertar de uma nova consciência e uma mudança de mentalidade. A sociedade deixou de aceitar o inaceitável. Subitamente, redescobriu-se o óbvio: não é legítima a apropriação privada do Estado e é crime o desvio de dinheiro público", disse ao Estadão o ministro Luís Roberto Barroso, que segue sendo um dos principais defensores da Lava Jato no STF.
Barroso acrescentou: "Como tudo o que é humano, é possível encontrar erros na operação. Porém, é impossível exagerar a importância de se ter revelado ao País o quadro amplo de corrupção estrutural, sistêmica e institucionalizada que nos atrasa na história. Não é singela a luta para desnaturalizar as coisas erradas no Brasil."
A correlação de forças no STF, que opõe os "garantistas" (críticos aos métodos da Lava Jato) aos "punitivistas" (considerados mais rigorosos com réus, como Barroso, Fux e Fachin), foi alterada com a aposentadoria do ministro Celso de Mello e a indicação de Kassio Nunes Marques. O então desembargador chegou à mais alta Corte do País com o aval do Centrão, especialmente a bênção do presidente do Progressistas, o senador Ciro Nogueira (PI). Nogueira é réu no STF no caso do "quadrilhão do PP".
Na Segunda Turma, Nunes Marques tem se alinhado a Gilmar Mendes e a Ricardo Lewandowski – expoentes da ala mais crítica à atuação de procuradores – para impor derrotas à operação. Já votou a favor do arquivamento de inquérito contra o ex-senador Eunício Oliveira (MDB-CE) e da exclusão da delação do ex-ministro Antonio Palocci em ação penal contra o Instituto Lula. Nos bastidores do STF, a expectativa é de que venha do novato, indicado ao cargo por Bolsonaro, o voto decisivo que vai definir se Moro agiu com parcialidade ao condenar Lula no caso do triplex.
<b>Retroalimentação</b>
Professora de Direito Penal da FGV Direito SP, Raquel Scalcon apontou duas derrotas emblemáticas da operação neste ano: o julgamento que garantiu a Lula o acesso às mensagens da Spoofing e a decisão do ministro Alexandre de Moraes que proibiu o Ministério Público de definir para onde devem ser destinados os recursos de multas decorrentes de condenações, colaborações premiadas e outros acordos. "Há aqui uma via de mão dupla.
O desgaste perante a opinião pública se somou ao desgaste perante o STF, e houve uma retroalimentação", afirmou Raquel. "Dois eventos fomentaram esse desgaste: o ingresso de Moro na política partidária e o acesso a certas conversas e diálogos. Mas ainda vejo certa divisão interna na Corte quanto à operação."
No fim de 2019, o STF impôs uma das maiores derrotas à operação ao derrubar a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, o que abriu caminho para a soltura de Lula. A discussão só retornou ao plenário depois que Cármen Lúcia deixou a presidência do tribunal e passou o bastão a Dias Toffoli.
Integrantes do STF avaliam que Fachin só pode contar, atualmente, com dois votos seguros ao seu lado – Barroso e Fux – e, talvez, Rosa Weber. "A Lava Jato trouxe transformações sem precedentes para o Brasil, que passou a ser respeitado internacionalmente pela atuação contra desvio de dinheiro público. Esse movimento teve perdas. Mas o País já mudou. E o combate à corrupção não vai retroceder", disse Fux ao Estadão, em entrevista em janeiro.
Procurado, Moro afirmou que a Lava Jato foi um trabalho "institucional de combate à grande corrupção que, enquanto perdurou, reduziu a impunidade no País". "Precisamos pensar em como avançar e não em retroceder." O STF enfatizou que "os ministros não se alinham em grupos, mas julgam de forma independente, conforme preveem as leis e a Constituição".
<b>Voto de Cármen Lúcia foi o ponto de inflexão</b>
Além da indicação do ministro Kassio Nunes Marques para o Supremo Tribunal Federal (STF), outro movimento interno chama a atenção na Corte: a postura da ministra Cármen Lúcia, que deixou de ser uma "aliada incondicional" da Lava Jato. Cármen deixou o ministro Edson Fachin isolado ao concordar com a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e votar, há duas semanas, para que o petista tivesse acesso à íntegra do material apreendido na Operação Spoofing. O resultado marcou uma nova derrota da Lava Jato no STF.
Integrantes da Corte ouvidos reservadamente pelo Estadão apontam que a ministra percebeu que os "ares mudaram" e tem procurado, discretamente, se dissociar da marca Lava Jato. O "ponto de inflexão" de Cármen foi em agosto de 2019, quando Cármen votou a favor de derrubar uma decisão de Moro que havia condenado o ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobrás Aldemir Bendine.
Aquela foi a primeira vez que Cármen divergiu de Fachin considerando os principais casos da Lava Jato analisados pela Segunda Turma. Na ocasião, a ministra concordou com a tese de que réus delatados têm o direito de falar por último em ações penais, manifestando-se depois de delatores – o que não foi garantido a Bendine.
Também chamou a atenção dos colegas a decisão recente de Cármen de sair da comissão que discute mudanças no regimento da Corte. A ministra integrava o grupo ao lado de Fachin e Barroso. O gesto foi interpretado como um desembarque da "ala lavajatista" – e uma forma de se descolar de o presidente da Corte, Luiz Fux, que vem sofrendo desgastes internos depois do voto em que contrariou a ala "garantista" e foi contra a possibilidade de reeleição na cúpula do Congresso.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>