O endereço do paulistano é um fator de risco de morte da covid-19. A doença, que inicialmente atingiu a população mais rica que viajou ao exterior, agora faz mais vítimas entre os de menor renda. Bairros periféricos e com pequeno número de vagas formais de trabalho chegam a ter dez vezes mais mortes por covid-19 em relação a distritos mais ricos e com maior oferta de empregos com carteira assinada, segundo estudo feito pela Rede Nossa São Paulo (RNSP).
No extremo da zona leste da capital, em Cidade Tiradentes, por exemplo, onde há 24 vagas de empregos formais por mil habitantes em idade de trabalhar, foram registrados 223 mortes desde o início da pandemia até o dia 2 de julho, de acordo com dados da Secretaria Municipal da Saúde. Já no bairro da Barra Funda, na zona oeste, onde existem 5.920 vagas de empregos formais por mil habitantes, 21 pessoas morreram do novo coronavírus no mesmo período.
A explicação para esse abismo é que a população que mora na periferia, por questões de sobrevivência, não pode ficar em casa. Ela tem de se deslocar para ir ao trabalho e acaba enfrentando aglomerações no transporte público. Por isso, é mais suscetível à doença.
"A relação entre o emprego formal e a covid-19 é mais um indicador que mostra que as mortes causadas pela pandemia têm endereço", afirma Carolina Guimarães, coordenadora da RNSP e responsável pelo estudo. Enquanto em países menos desiguais do continente europeu o fator de risco de morte pela doença eram a idade e condições prévias de saúde, no Brasil o risco é identificado pelo local da moradia, observa Carolina.
O trabalho cruzou não apenas o número de mortes por covid-19 registrado pela secretaria do Município com o emprego formal, mas também com renda média familiar e a quantidade de famílias em situação de vulnerabilidade – que são as que têm renda de até um quarto do salário mínimo (R$ 261,25). Por essas duas outras métricas também se chegou à conclusão de que a letalidade da pandemia é maior na periferia em relação a bairros mais ricos.
Cidade Ademar, Jardim São Luís, Jardim Ângela e Grajaú concentram um número de famílias em extrema pobreza mais de 200 vezes maior que os distritos de Barra Funda, Alto de Pinheiros, Jardim Paulista e Moema. E o número de óbitos por covid- 19 nessas localidades chega a ser 14 vezes maior na comparação com bairros mais ricos. Também distritos com menor renda média, como Jardim São Luís e Jaraguá, por exemplo, têm 2,7 vezes mais óbitos por covid-19 do que bairros nobres. "Essa é a crônica da tragédia anunciada", afirma o médico Alexandre Barbosa, membro titular da Sociedade Brasileira de Infectologia e professor da Unesp de Botucatu (SP). Ele diz que as doenças em geral, tanto agudas quanto crônicas, cobram um preço muito mais alto de quem tem menos renda e menor escolaridade.
Dois fatores, segundo ele, são responsáveis pela maior letalidade nessa camada da população. O primeiro é que essa população não consegue assimilar as medidas preventivas. "Tem baixo nível de percepção em relação à própria saúde."
O segundo fator é que essas pessoas não conseguem implementar as ferramentas de prevenção. No caso da covid-19, diz Barbosa, moradias muito cheias impedem um isolamento eficiente. Além disso, para ter o sustento diário, essas pessoas têm de se expor no transporte público, nas ruas. "A gente já sabia que o preço da covid-19 nas periferias seria muito maior na população mais pobre. Temos exemplos semelhantes, como a tuberculose."