Em uma tarde chuvosa de março de 2010, Umberto Eco chegou esbaforido em seu escritório/biblioteca, em Milão. Ele tinha afazeres em Turim e, por conta da neve, o aeroporto milanês estava fechado. “Vim de trem para não me atrasar muito”, disse ele à reportagem do Estado, largo sorriso, uma hora depois do combinado.
Eco concederia a entrevista que marcaria a capa do primeiro número do Sabático, suplemento literário que começou a circular no sábado seguinte, dia 13 de março daquele ano.
O tema da conversa: o lançamento, no Brasil, da obra Não Contem com o Fim do Livro, escrito em parceria com o francês Jean-Claude Carrière e que a editora Record lançaria nas semanas seguintes. Em um momento em que o avanço tecnológico prometia abreviar (até mesmo encerrar definitivamente) a carreira da publicação em papel, Eco revelava seu ceticismo em relação à tecnologia. “O livro, para mim, é como uma colher, um machado, uma tesoura, esse tipo de objeto que, uma vez inventado, não muda jamais. Continua o mesmo e é difícil de ser substituído”, afirmou, categórico.
Eco falava de dentro de uma verdadeira fortaleza literária – naquele escritório/residência em Milão, ele guardava nada menos que 30 mil volumes, cuidadosamente dispostos em estantes espalhadas pelo apartamento, em um andar onde antes fora um pequeno hotel. “Se eram pouco funcionais para os hóspedes, os longos corredores são ótimos para mim pois estendo aí minhas estantes”, comentou o escritor, com indisfarçável prazer, ao apontar uma linha reta de prateleiras repletas que não pareciam ter fim.
Os antigos quartos? Transformaram-se em escritórios, dormitórios, sala de jantar, etc. O mais desejado, no entanto, era fechado à chave, climatizado e com uma janela que vedava a luz solar: lá estavam as raridades, obras produzidas há séculos, verdadeiros tesouros. Isso mesmo: tesouros de papel.
O encontro seguinte que Eco teve com o Estado aconteceu um ano depois, em Frankfurt, durante a feira do livro. O escritor italiano lutava contra as críticas ao seu livro O Cemitério de Praga, em que alimentou uma discussão sobre antissemitismo. Com isso, chamou atenção até do Vaticano, preocupado com trechos em que o personagem principal, Simonini, falsificava testamentos e comercializava hóstias consagradas para missas satânicas. “Minha intenção era desmembrar o racismo em todas as suas manifestações. Para isso, usei citações históricas. O início dos judeus vem de Céline. Dos alemães, busquei as expressões violentas e injuriosas de Nietzsche. Não inventei nada.”