Pedro Daniel vê cenário para futebol brasileiro mudar: Chance de mexer no setor

O futebol brasileiro está em um momento de mudanças profundas e elas podem ser aceleradas por fatores externos e internos. Essa é a avaliação de Pedro Daniel, diretor-executivo da EY, que aponta a medida provisória editada pelo presidente Jair Bolsonaro que dá aos clubes mandantes o direito de negociar a transmissão dos jogos em que são mandantes como um passo importante para uma alteração bem maior: a negociação coletiva dos contratos, especialmente por se dar em um período de transformação digital.

Essa mudança, na visão do executivo, também tem ocorrido na indústria esportiva e na mentalidade dos dirigentes, hoje mais maduros e conscientes da necessidade de que os acordos sejam coletivos. Ele pondera, no entanto, que a mudança no formato de negociação dos contratos pelos direitos de transmissão não deveria ter vindo através de uma medida provisória, mas após amplas conversas que possam permitir um modelo que aumente o alcance e a receita do futebol brasileiro.

Como um fator externo, Pedro Daniel aponta que a crise do coronavírus forçou os times a acelerarem a produção de conteúdo digital. E pode conduzir outros a se transformarem em clube-empresa, um processo que ele vê com potencial para o crescimento de equipes médias, e que faz parte da necessária reestruturação do futebol nacional.

Confira a entrevista completa com o executivo da EY abaixo:

Qual é o tamanho da perda para os clubes pela crise do coronavírus?
No pacote do jogo, a redução é de 60%, aproximadamente. A pandemia chegou em março, então alguns jogos haviam acontecido, e ainda tem os planos de sócio-torcedor para mitigar isso. Mas bilheteria, não tem como existir mais neste ano. E também haverá um impacto sobre a receita dos planos de sócio-torcedor, porque no Brasil há uma grande ligação com o ingresso, ao contrário de outros países.

E o impacto sobre outras receitas? Já é possível estimar essas perdas?
É um impacto indireto, porque a pandemia trouxe uma crise de liquidez que também afetou as empresas. Por outro lado, a desvalorização do câmbio torna os atletas mais baratos no mercado estrangeiro, e os brasileiros não são "artigos" de primeira linha, então funciona como uma substituição, como um produto de segunda linha, para os clubes que não vão conseguir contratar grandes estrelas. Isso pode beneficiar os brasileiros.

Com a redução das receitas recorrentes, os times brasileiros vão depender ainda mais da venda de jogadores para fechar suas contas?
Com a crise econômica, as pessoas vão investir menos, vão assinar menos o pay-per-view. A pandemia não foi específica de uma indústria ou uma região, ou seja, o PIB do futebol também foi afetado. As empresas também estão com problemas de liquidez, toda a cadeia. E os clubes, que já estavam em dificuldade pré-pandemia, terão de honrar seus compromissos e a venda de atletas, historicamente, é a solução deles.

Como os clubes podem agir para obter novas receitas em um período de crise econômica?
Os clubes deveriam se unir para regular a indústria para faturar mais, com o clube-empresa, o fair-play financeiro. Como a indústria está estruturada, você não vai conseguir recursos novos. Essa é uma chance de mexer no setor como um todo.

É possível acreditar que os clubes têm a mentalidade de união para aumentar as receitas do futebol brasileiro e não apenas de suas equipes?
Sou otimista por estarmos em um momento de transformação, pelo contexto da indústria e pela mentalidade dos dirigentes. Nos distanciamos muito do mercado externo. A discussão é como se fazer, pois já temos o diagnóstico. Há casos, ainda que isolados, de união de clubes. O conteúdo é o campeonato não existe internacionalização de uma marca de um clube sem o campeonato, sem o escopo em que está inserido.

Como você avalia a medida provisória que alterou o modelo de negociação dos direitos dos jogos, deixando essa possibilidade na mão dos clubes mandantes?
Deveria ter havido uma discussão mais ampla, com todos os entes envolvidos. É uma discussão muito importante, sobre o maior faturamento de todos os clubes do Brasil. E estamos em um momento de transformação digital em todos os segmentos. Pode trazer inovações para a indústria. Mas essa é só uma parte do processo, porque o produto é o campeonato e não o clube. A gente não compra o jogo do Real Madrid ou do Manchester City, mas o Campeonato Inglês, o Espanhol e a Liga dos Campeões. Então, pode ser importante para levantar o debate da negociação coletiva. O produto é o Campeonato Brasileiro e é esse bolo que precisa crescer. Depois, você discute o modelo de distribuição. O do Brasil é muito desigual, com seis vezes de diferença entre o que mais ganha e o que menos na ganha. Na Inglaterra, por exemplo, são dois.

Iniciativas como o Clubes dos 13 e a Primeira Liga ficaram pelo caminho no futebol brasileiro. É possível acreditar que a mentalidade das equipes mudou para que uma negociação coletiva pelos direitos dos jogos avance?
O mercado mudou. Antes, no Clube dos 13, a discussão era sobre um produto local. Hoje, o Brasileirão disputa mercado com as ligas europeias, não existe fronteira. Forçado ou não, ocorreu um amadurecimento, não só dos dirigentes, mas também do mercado. Acho que atingimos o grau de maturidade necessário para estruturar o produto como um todo, e não com o clube pensando apenas dentro do seu conselho.

O modelo de transmissão adotado pelo Flamengo é viável financeiramente ou foi apenas um improviso como resposta imediata para a MP e à falta de acordo para transmitir seus jogos do Campeonato Carioca?
Mesmo sendo novidade, a transmissão não atingiu os números financeiros e de alcance que teria com a Globo. A discussão é mais ampla do que ser disruptivo. Não vejo como algo interessante para o mercado local que cada clube negocie seu conteúdo isoladamente.

A negociação individual dificultaria a entrada do futebol brasileiro no mercado externo?
Se você individualizar, vai ser criado um grande problema. Na Espanha, há estratégias de internacionalização dos mercados, com um Barcelona x Real sendo à noite, em um domingo, para atingir outros países. É preciso pensar no coletivo, como, em outro exemplo, na Inglaterra, onde um dos seis grandes sempre joga na hora do almoço do domingo.

Como os clubes devem enxergar a Rede Globo nesse cenário de mudança no modelo de negócio?
A disrupção em qualquer indústria vem antes do arcabouço jurídico. A Globo se posicionou bem, vinha fazendo isso, tenho construído, por exemplo, o pay-per-view via aplicativo. E os clubes deveriam vê-la como um parceiro importante e usá-la mais assim.

Como transformar produção de conteúdo em receita?
Os clubes foram clube social, depois se tornaram empresas de entretenimento. Hoje são criadores de conteúdo. A pandemia acelerou essa transformação digital dos clubes. O jogo é o meio e não o fim, é gerador de conteúdo. A gente vê isso com as séries de clubes na Netflix. A maior parte do consumo do Campeonato Espanhol não é mais pelo jogo, mas em plataformas, com o fantasy game e os aplicativos.

A lógica de 12 times grandes no futebol brasileiro está se alterando?
Há uma correlação muito clara entre os aspectos financeiros e a performance. Quando teve o crescimento do bolo financeiro do futebol, a distância aumentou. A história não garante mais a performance, mas a gestão. O mais rico tende a ganhar o campeonato de 38 rodadas. É assim com o Bayern na Alemanha, a Juventus na Itália… O clube que fatura R$ 700 milhões não compete mais com o de R$ 200 milhões, a não ser em um mata-mata. No Brasileirão, há uma consolidação de candidatos ao título nos últimos três anos, especialmente com Flamengo e Palmeiras, ainda que com alguns clubes próximos. Isso já aconteceu e vai se aprofundar com as novas receitas

O clube-empresa é uma solução ou um paliativo para os times?
É uma solução em alguns casos. Nem todos querem virar e não vão virar. A inovação não vem do topo da pirâmide, mas do meio para baixo, em qualquer indústria. Acho propício para clubes de Série B, como o caso do Bragantino, que chegou muito rápido na Série A. E chega sem o passivo para disputar, então vai furar a fila. O Athletico-PR é um caso interessante, tem estrutura e com aporte de capital vai para o primeiro bloco.

A crise financeira provocada pelo coronavírus pode levar clubes endividados a fechar?
Muitos clubes já teriam fechado se fossem empresas ou estariam em recuperação judicial. A gente fala em falência esportiva e já está começando a ocorrer. A pandemia impacta muito mais quem já estava com dificuldade financeira, que se torna mais vulnerável.

O Flamengo foi o primeiro time brasileiro a ter suas contas auditadas pela EY e é visto como exemplo de reorganização financeira, que contribuiu para o êxito esportivo. O que pode ser replicado em outros clubes?
A recuperação foi focada em três pilares. O primeiro foi o retorno da credibilidade, o que fez com gestos simbólicos de antecipar o pagamento de dívidas, além de uma comunicação eficiente. Depois, houve o aumento de receita, se torando o clube que mais faturava, em um crescimento orgânico. A partir disso, focou em performance, com investimento em jogadores e treinadores renomados e infraestrutura. O plano deixava claro que performance esportiva não era uma causa, mas uma consequência. Você não é campeão a qualquer custo e se é campeão não consegue se manter. Mas clubes em situação pré-falimentar não conseguem mais o crescimento orgânico para mitigar o passivo, por isso o clube-empresa pode ser interessante nesses casos.

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