Quando pequeno, Cristian assistia maravilhado a um programa de TV que contava com uma travesti. O garoto morava em uma pequena cidade da região de Córdoba, interior da Argentina, e, aos poucos, se reconheceu naquela personagem. Adolescente, decidiu fazer a transição para Camila. Era a única habitante trans de Da Falda, que contava com pouco mais de 5 mil pessoas.
Em meio às inevitáveis adversidades, Camila Sosa Villada logo descobriu que a escrita era um ato íntimo de resistência. Assim, depois de se mudar para a capital Córdoba, ela cursava Comunicação Social e Teatro na universidade pela manhã e, à noite, se prostituía no Parque Sarmiento – lá, foi acolhida pelas travestis e, pela primeira vez, encontrou seu lugar de pertencimento no mundo.
A experiência inspirou o livro O Parque das Irmãs Magníficas (Tusquets), sensível relato que, com pitadas confessionais, vagueia tanto pelo conto de fadas como história de terror. Com uma escrita inebriante, Camila utiliza recursos do realismo mágico para descrever personagens como Tia Encarna, espécie de líder das travestis que surpreende ao adotar um bebê. O romance ganhou um prêmio na Feira do livro de Guadalajara, do México, o que aumentou o prestígio literário de Camila.
Ela é uma das principais convidadas de um evento promovido pelo Instituto Goethe: na quarta, dia 29, às 17h, Camila vai falar sobre violência e literatura ao lado da brasileira Patricia Melo e da também argentina Claudia Piñeiro, com mediação de Josélia Aguiar – basta acessar o canal de YouTube do instituto. Por e-mail, Camila respondeu essas questões.
Frida Kahlo dizia não ser surrealista, mas que pintava sua própria realidade. É possível dizer o mesmo de O Parque das Irmãs Magníficas, que tem uma linguagem poética e até mitológica com homens sem cabeça e mulheres pássaros.
Você pode dizer o mesmo, exatamente o mesmo sobre O Parque das Irmãs Magníficas. Vou dar um exemplo. Ela pintou o quadro O que a Água me Deu. Sobre a água, ela vê todas aquelas imagens que fazem parte da sua vida. No meu caso, seria O que o Papel ou Documento Word me Deu. Nas minhas primeiras aproximações à zona de Córdoba e aos seus clubes ou discotecas gays, imagina, eu estava quase sempre muito bêbada ou sob o efeito de substâncias que já esqueci. Nas minhas lembranças, era como estar em uma festa com todas os personagens de Guerra nas Estrelas. O texto em papel apenas revelou aquela traição da minha memória, que é como o mundo tem sido desde então.
<b>Você pertence a uma importante mudança de concepção de mundo e seu prêmio literário dá mais visibilidade a essa mudança. Qual o significado do prêmio?</b>
Penso em todas as meninas travestis que nascem e continuarão a nascer apesar dos assassinatos que vão inspirar outras notícias. Na minha época, só nos diziam que íamos ser prostitutas e morrer nas valas. Agora, dizem: olha, querida, temos também cantoras, biólogas, políticas, escritoras, cozinheiras, enfermeiras, atrizes, roteiristas, diretoras de cinema. E essa notícia do prêmio constitui uma força. As travestis já não entram nessa vida derrotadas, aceitando seu destino como era na nossa época.
<b>O Parque das Irmãs Magníficas é mais autobiográfico ou contém muita fantasia? Qual é a relação entre os dois elementos?</b>
É uma pergunta que não gosto de responder. É minha ficção, minha diversão com as palavras. É a maneira como brinco comigo mesma e com você. Se definir esse jogo, perco. E não gosto de perder.
<b>A força do livro, me parece, está em mostrar as cicatrizes das travestis, principalmente das que estão vivas. </b>
Essas marcas são dolorosas demais para serem tratadas por uma opinião. Talvez em português tenha outra força, mas aqui, na Argentina, parece que toda elaboração cultural é baseada em opiniões. Até o amor é um encontro de opiniões. Acho que as cicatrizes doem e são respeitadas. Quanto a Parque das Irmãs Magníficas, é a história da Tia Encarna, uma travesti de 178 anos que, em uma noite, encontra um bebê abandonado e decide adotá-lo, modificando para sempre sua vida e também a de suas amigas travestis.
<b>O livro também parece mostrar a hipocrisia da família patriarcal, que expulsa seus filhos travestis, mas cujos pais também buscam travestis para seu prazer.</b>
Posso escrever ficção sobre isso, mas não posso falar sobre isso a sério. Dou risada se tenho que falar da hipocrisia porque tenho conhecimento como travesti, porque fui obrigada a morar em um lugar indeterminado do mundo. Aquele lugar a que me confinaram deu-me uma perspectiva daquela hipocrisia pela qual você se refere e do qual não tenho o menor respeito. Rio porque é muito patético. Mas não é só com as travestis – é sobre tudo o que eles, hipócritas, querem e que não podem explicar sem aquele pequeno manual para viver a vida que herdam e guardam.
<b>O livro fala sobre pobreza e violência, mas sem romantizar. Como encontra esse equilíbrio?</b>
É possível falar de pobreza quando se é pobre. Se você não foi pobre, se não conhece a fome ou a impotência de não poder pagar nem mesmo um remédio, pode cair na romantização e nos abusos. Falar sobre o que sabemos permite um equilíbrio.
<b>A Argentina está muito avançada em relação a outros países latinos pois, no Brasil, a homofobia continua sendo um problema constante. O que pode ser feito para que a autodeterminação de gênero seja reconhecida?</b>
É uma pergunta difícil. Sou uma simples travesti que sobreviveu a tantos massacres e estou pasma de tanto resistir. Não temos uma fórmula aqui. Existimos e tínhamos grandes referências políticas que colocavam o próprio corpo nesses antros (os antros políticos) da mesma forma que nós, travestis, oferecíamos o corpo a clientes, nos supermercados, nas ruas. Um sem o outro não teria sido possível. Esse é o retrato de como uma travesti não sobrevive sozinha. Há sempre outra, em alguma outra parte do mundo, e, se tiver sorte, em determinado momento, essas existências serão protegidas de alguma forma.
<b>Fale sobre travesti e maternidade: Tia Encarna fica com a criança, então por que essa maternidade incomoda?</b>
Suponho que, por milênios, diferentes formas de opressão foram perpetuadas desde a infância. Se somos ensinados a desempenhar certos papéis, a vencer, a competir, penso em jogos de técnica e estratégia de guerra. O patriarcado (o neoliberalismo mais cruel) disputa o futuro das crianças. Se as crianças estivessem em contato com outras formas de vida, aquelas que respeitam os outros e que estejam organizadas sob outras regras que não as que regem nossas vidas hoje, certamente essas opressões de que estamos falando não teriam mais lugar no mundo.
<b>Como a luta das travestis se assemelha à das mulheres por igualdade e liberdade?</b>
Suponho que toda luta política e ética sempre deseja um mundo mais habitável. Uma vida habitável.
<b>Uma frase no romance diz: "O amor e a beleza são exaustivos". Como será o amor e o carinho depois desta pandemia?</b>
Espero que desesperado, que as paixões nunca sejam curadas, que, assim que pudermos, todos corramos para os braços um do outro, de todas as cores e formas possíveis, para fazer amor e dançar e ficar exausta e suar e reconhecer os cheiros do corpo. Esperamos encontrar formas mais felizes de nos amarmos uns aos outros e de deixarmos nos amar também. De qualquer modo, como o amor é um pensamento, não creio que vá mudar se os seres que pensam não mudarem.
O PARQUE DAS IRMÃS MAGNÍFICAS
Autora: Camila Sosa Villada
Trad.: Joca Reiners Terron
Ed.: Tusquets (208 págs., R$ 49,90)
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>