Quando o mundo das fintechs era "mato", o australiano Brett King já pregava sobre as mudanças que transformariam o setor financeiro. Em 2010, ele escreveu Bank 2.0, livro que mapeou as tecnologias que viriam a mudar os bancos na década vindoura. Outras duas atualizações da obra, em 2014 e 2018, permitiram vislumbrar o impacto de instituições bancárias totalmente digitais, como o Nubank.
Na alvorada desta nova década, King volta a atenção para o impacto da inteligência artificial (IA) e da crise climática em novo livro: The Rise of Technosocialism: How Inequality, AI and Climate Will Usher in a New World (A ascensão do tecnossocialismo: como desigualdade, IA e clima vão moldar um novo mundo).
Ao <b>Estadão</b>, King, que também ocupa uma cadeira no conselho da startup brasileira DrumWave, falou sobre o impacto da tecnologia na economia global. Em sua visão, os bancos centrais deverão se transformar em organizações de IA para dar conta de todas as mudanças no horizonte.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
<b>O que o senhor quer dizer com "tecnossocialismo"? </b>
Se pudesse, eu renomearia o título do meu livro para "A ascensão do neofeudalismo". Desenhei quatro cenários para o futuro. No primeiro, há enorme falha nos governos, porque esperamos tempo demais para a mudança climática ou para a IA. O outro é a rejeição à tecnologia, particularmente à IA, por causa do jeito que rompe a empregabilidade. E os outros dois cenários prováveis são um "neofeudalismo", que é como um supercapitalismo patrocinado pela IA, ou um tecnossocialismo. Este não é o socialismo clássico, em que a teoria marxista é sobre os trabalhadores dominando os meios de produção. Tecnossocialismo é sobre como a tecnologia permite que cidadãos dominem a economia de forma diferente. É um realinhamento do papel do capitalismo e dos mercados na sociedade.
<b>Como é possível fazer esse realinhamento? </b>
Se aumentarmos o capitalismo, muito provavelmente haverá uma revolução devido ao desemprego causado pela tecnologia e os efeitos das mudanças climáticas. Todas essas coisas combinadas geram imenso estresse. Ao inserir tecnologia nos governos, você os torna muito mais eficientes. É uma forma de socialismo em que todas necessidades dos cidadãos são olhadas.
<b>Os governos estão prontos para adotar tecnologia?</b>
O único governo que faz isso é a China. Alguns países da Ásia estão chegando lá. Mas a China olha para infraestrutura, com automação da nova rota da seda, e para moedas digitais, com imenso uso de inteligência artificial. Usam reconhecimento facial, de voz ou de dedos para pagamentos. Eles têm uma regulamentação em IA que deve ser a mais avançada do mundo atualmente. Eles ensinam IA no currículo escolar. A China entende que as economias mais bem-sucedidas do século 21 serão economias autônomas.
<b>A IA gera desigualdade?</b>
O maior problema da IA em acentuar a desigualdade é o que acontece com o emprego. De modo geral, o nível de trabalho humano na economia é reduzido. Isso vem acontecendo desde os anos 1980. Vimos a quantidade de trabalho nas maiores companhias sendo reduzido em relação às décadas anteriores. Mas a IA vai levar isso a um novo nível. Lá para 2040, teremos desemprego em massa causado pela tecnologia. A solução é a renda básica universal. Mas tem o problema de formar mais desigualdade, porque é muito difícil fazer a mobilidade social com ela.
<b>Qual é a solução? </b>
É o mundo pós-escassez, em que o jeito que pensamos sobre a troca de valores, dinheiro e economia são ineficientes hoje. E há também outras coisas que vão forçar essa mudança filosófica, sendo a mudança climática a primeira delas. Se você pensa sobre a década de 2050, e nos 50 a 100 anos seguintes, o maior esforço humano que será feito em escala global será a mitigação do clima. A escala é similar ao que vimos durante a Segunda Grande Guerra em termos bélicos, onde o custo das coisas deixa de ser considerado porque se trata da continuidade da espécie.
<b>O sr. escreveu muito sobre o banco do futuro. Qual é o futuro dos bancos?</b>
Não tem um futuro. Lá pelos anos 2050, as maiores economias do mundo serão autônomas. E essas economias autônomas serão criadas sobre coisas como contratos inteligentes, automação de cadeia de suprimentos. Para isso, você precisa de dinheiro digital, um dispositivo, sua comunicação de IA. Por volta dessa época, provavelmente metade das nações do mundo será movida por máquinas. Não vamos precisar de bancos para rodar infraestrutura financeira.
Por que você precisaria de uma conta bancária se todas suas necessidades são cuidadas por essa economia autônoma?
<b>Que papel os bancos centrais terão neste contexto? </b>
Bancos centrais vão precisar se tornar corporações baseadas em IA ou companhias tecnológicas. Essas instituições têm dois papéis. O primeiro é de supervisão. Qual é a configuração política? Pode ser monetária, bancária e assim por diante. E a supervisão do sistema é para ter certeza de que não há riscos no nível do sistema financeiro ou individual. A política funcional continua, mas vai se tornar código. É monitoramento. É por isso que digo que reguladores precisam se tornar companhias de tecnologia no médio prazo.
<b>Como o sr. vê o papel das carteiras de dados, como a que a DrumWave desenvolve, neste novo contexto?</b>
Se você está falando de IA, existe um nível de sistema para se considerar. Mas há um nível individual e a precisão de sua IA. O jeito que ela melhora sua vida é sobre como os dados são gerenciados. Por isso, é importante quem é dono desses dados, como são monetizados e onde está o valor. A melhor ilustração disso é o DNA de crianças. Quem deve ter acesso a ele? Uma empresa de seguros que pode querer precificar o risco de potenciais doenças no futuro, com base no genoma? Vamos ajudar as pessoas a colocar isso numa política de preços. Para que o uso ético dos dados e a habilidade de comercializá-los seja o centro de uma transição para uma sociedade altamente automatizada.
<b>Criptomoedas, NFTs e outros ativos vão ter espaço? </b>
Estamos no estágio inicial da evolução de ativos digitais e moedas digitais. Sociedades altamente autônomas são movidas por contratos digitais, que exigem dinheiro programável, seja cripto, stablecoins, tokens ou moedas de bancos centrais. O futuro das moedas digitais vai por aí. Mas há uma segunda coisa acontecendo em paralelo. Parte disso é dado, parte é identidade. Parte disso é o metaverso, vivemos em um mundo digitalizado. Estamos criando personas, humanos digitais que replicam nossos dados – gravações de nosso DNA, comportamento ou atividade em algoritmos. E o mesmo vale para humanos virtuais e coisas assim, que replicam o mundo em que vivemos, como contratos, ativos e propriedade intelectual. As leis e sistemas que temos no mundo real não são robustos o suficiente para isso.
<b>Qual papel vai ter o open banking no futuro?</b>
Quando você pensa no papel da carteira inteligente e como irá nos ajudar como indivíduo, a maior mudança é o conceito de orçamento. Porque agora sua saúde financeira se torna essa ferramenta ativa para gerenciar seu dinheiro, e uma IA sempre vai ser melhor para fazer isso. Mas isso requer dados que os bancos têm, e exige outras informações comportamentais. Exige um nível de automação e meio que exige open banking e acesso a dados. Por exemplo, se temos uma hipoteca, hoje o banco confia em você. Se você vai comprar uma casa, o banco não sabe que você vai comprar uma casa até chegar a eles. Mas o Google, a Apple e o Facebook sabem por causa da atividade de busca. É preciso casar esses dois tipos de dados para criar uma experiência atraente. É por isso que precisamos do open banking. As economias que têm resistido ao open banking vão ficar para trás.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>