O historiador e jornalista argentino Carlos Pagni, comentarista político do diário La Nación e do Canal 13, é um crítico do peronismo e do modelo implementado por Néstor Kirchner (2003-2007), morto em 2010, e pela mulher dele Cristina (2007-2015), concentrado na ampliação de subsídios e de programas sociais sem lastro orçamentário.
Pagni vê na tentativa de recriar os tempos de bonança vividos durante o governo do caudilho Juan Domingo Perón (1946-1955), no pós-guerra, parte da explicação para as crises inflacionárias cíclicas da Argentina e para a perda de relevância econômica do país na América Latina.
Nesta entrevista, que faz parte de uma série de reportagens especiais lançada pelo <b>Estadão</b> sobre a ascensão da esquerda na região, feita num café no bairro de Retiro, Pagni também analisa a provável derrota dos peronistas nas eleições de 2023. "O modelo peronista se esgotou", afirma.
<b>Qual o papel do peronismo nas crises cíclicas vividas pela Argentina?</b>
Simplificando, eu citaria a obra de Tulio Halperin, um grande historiador argentino. A tese dele é que, nos anos 1940, Perón produziu uma espécie de revolução social, beneficiado pelas condições excepcionais do pós-guerra, quando a Argentina era credora da Inglaterra. Perón percebeu que esse modelo era insustentável, mas em 1955 "fizeram o favor" de tirá-lo do poder. Aí, essa experiência peronista, que gerou uma bonança que marcou a história argentina, virou um mito possível.
<b>De que forma o kirchnerismo se encaixa nisso?</b>
Todos os governos posteriores tentaram recriar esse mito. Quando chega o ciclo das commodities, entre 2003 e 2013, e o crescimento da China inunda a América Latina de dólares, Néstor e Cristina (hoje vice-presidente) dizem: "É a nossa chance de reconstruir aquele mundo do Perón". Essa ilusão é a essência do kirchnerismo em matéria econômica. Só que isso é insustentável. Halperin tinha razão. O modelo da Argentina peronista se esgotou.
<b>Até que ponto é possível dizer que essas crises se devem à questão cambial?</b>
O dólar na Argentina teria de ser mais caro do que o valor estabelecido pelos governos peronistas. Mas, pela forma como a sociedade argentina se acostumou a viver, uma grande desvalorização do peso levaria qualquer um à derrota eleitoral.
<b>Que estilo de vida é esse?</b>
Aqui na Argentina, todos querem viajar para Miami, ter um carro importado e viver acima das possibilidades. É para satisfazer as necessidades de consumo da sociedade argentina, sobretudo nos setores médios, que os governos sobrevalorizam o peso. É esse atraso cambial que gera crises cíclicas. Desvalorização. Pobreza. E começa tudo de novo. É isto que está acontecendo hoje no governo de Alberto Fernández.
<b>O que difere Fernández de Gustavo Petro, na Colômbia, e Gabriel Boric, do Chile?</b>
A diferença é que é impossível hoje na Argentina chegar ao equilíbrio fiscal subindo impostos, algo que Boric e Petro até podem conseguir no Chile e na Colômbia. O governo argentino precisa cortar gastos com urgência. É essa a discussão que o governo Fernández tem pavor de fazer. Isso acaba criando uma paralisia, porque Cristina não aceita fazer isso de jeito nenhum. Ela não entendeu que as condições da economia mudaram.
<b>Com uma inflação batendo quase 90% ao ano, qual seu prognóstico para as eleições de 2023?</b>
Bom, a coalizão Juntos por El Cambio (opositora) é favorita. Mas não sei se (o ex-presidente) Mauricio Macri (2015-2019) tem chance. Ele tem um problema de rejeição muito alto. O nome mais competitivo da centro-direita é o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta. A ex-ministra Patricia Bullrich também está bem cotada. A briga dentro da coalizão vai ser grande.
<b>Por que Macri não conseguiu deixar o peronismo para trás?</b>
Se você olhar a trajetória econômica do governo dele, o ajuste fiscal que ele precisava fazer era quase impossível de ser feito. Macri precisaria de um capital político enorme. Só que ele não tinha isso. Um ajuste fiscal numa recessão é duro, porque agrava o problema.
<b>Isso prejudicou também outros governos de direita e centro-direita?</b>
Sim. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o Paulo Guedes, no Brasil. Os ministros ortodoxos da "direita neoliberal" são excelentes num ciclo expansivo. O (ex-presidente) Lula está pensando que vai encontrar o mesmo mundo feliz de quando era presidente, mas terá uma dura surpresa se for eleito.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>