O desconforto na videoconferência era visível. Por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e uma equipe do Ministério da Saúde tiveram de se reunir com lideranças indígenas para debater o avanço do coronavírus sobre povos isolados da Amazônia. A reunião virtual de 17 de julho, porém, terminou em troca de acusações. Beto Marubo, Angela Kaxuyana e Sônia Guajajara disseram que a política do governo era genocida. Robson Santos da Silva, secretário especial de Saúde Indígena, chamou-os de levianos. Os índios reagiram relatando ao STF o rumo "humilhante e ameaçador" do encontro.
O ruído no diálogo entre o governo de Jair Bolsonaro e os índios mostra uma fratura numa relação que remonta o período colonial. Ao longo da história, militares e comunidades tradicionais estiveram próximos. A imagem do Exército aliado das aldeias se consolidou a partir das expedições do oficial Cândido Mariano Rondon pelo Centro-Oeste, no começo do século XX.
Pela lupa da revisão histórica, o trabalho de Rondon é visto hoje como paternalista e ponta de lança para a entrada das frentes de exploração. Mas o lema do marechal – "Morrer, se preciso for. Matar, nunca" – é valorizado, especialmente por ter sido usado em regiões onde hoje a única lei é a da bala.
Na visão de lideranças indígenas e entidades do setor, é este legado conciliador de Rondon, embora enviesado, que foi abandonado pela atual geração de generais que ocupa espaço estratégico no governo.
A atuação conflitante com interesses indígenas existe desde o início do governo, quando Bolsonaro assumiu compromisso de interromper demarcações de terras e abri-las à mineração. Em um gesto à bancada ruralista, tentou transferir o poder das demarcações para o Ministério da Agricultura, mas o STF manteve a competência com a Fundação Nacional do Índio (Funai). Em plena crise sanitária provocada pela pandemia, Bolsonaro – que é capitão da reserva do Exército – vetou uma série de dispositivos de lei que definiu medidas para combater o avanço do novo coronavírus entre indígenas. O presidente barrou obrigações como a de garantir acesso universal à água potável, distribuir gratuitamente materiais de higiene e ofertar leitos hospitalares e de UTI.
Em 3 de julho, a recepção de 20 minutos do vice-presidente Hamilton Mourão a Dario Kopenawa no Palácio do Planalto também foi marcada pelo mal-estar. O líder ianomâmi viajou de Roraima a Brasília para implorar ao general, que se autodeclara indígena, a remoção de garimpeiros no território localizado no norte da Amazônia e que, em tempos de isolamento, ampliam o risco de transmissão durante a pandemia.
Uma combinação de garimpo e doenças infecciosas fez Dario sepultar, nas últimas semanas, alguns dos seus antepassados. "Não tem apoio do governo federal para barreirar o coronavírus. Os garimpeiros estão lá levando essa doença para terra Ianomâmi", disse. "Não temos respostas do poder público."
Velhos sertanistas fazem coro com as novas lideranças indígenas. Nas quase cinco décadas em que o sertanista José Carlos Meirelles se dedicou à proteção dos índios, como funcionário da Funai, viveu diferentes tipos de perigo. Usava a cloroquina para combater as malárias que contraiu, bem antes de a droga ser popularizada por Bolsonaro.
Em um contato conflituoso com os tsapanawas, foi flechado no rosto. "Rondon é uma figura conhecida no mundo todo. O Exército podia se voltar um pouco para o passado e ver que todo trabalho indigenista começa com Rondon. Está faltando um historiador no Exército para dizer: Olha, o Rondon está se revirando no túmulo".
O ex-presidente da Funai Sydney Possuelo é outro crítico da postura atual dos militares. Ele foi o responsável por reformular, no fim dos anos 1980, a política de contato com povos isolados. Até então, seguia-se a linha rondoniana, de contato ativo. "Rondon via em todos os homens uma irmandade. A ideia era trazer os nossos irmãos que estavam distanciados da civilização para que pudessem gozar das benesses da civilização", afirma. "O Exército naquele tempo parecia ser mais sensível. Os militares hoje são o avesso. Os que se manifestam, se manifestam contrários aos interesses dos povos indígenas."
<b>Covid</b>
O avanço da covid-19 só piorou a relação entre índios e militares. Até a última sexta-feira, eram 24.326 índios infectados, com 399 mortes, números que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) considera subnotificados. As contaminações chegaram a localidades remotas, às quais o acesso só é possível por aeronaves ou embarcações, do Alto Xingu ao Vale do Javari.
"A Funai tem ideia que o enfrentamento à covid se resume a entregar cestas básicas. No Vale do Javari, o problema não é cesta básica. O problema é a proteção do território, a fiscalização", afirma Beto Marubo, liderança local que cobra fiscalização rígida de atividades ilegais e cumprimento de protocolos sanitários na região.
Entre os índios, há uma permanente preocupação com mortes em massa. Eles sabem bem o impacto das doenças infecciosas nas aldeias. O caso dos tapayunas, em Mato Grosso, é emblemático. Nos anos 1960, os índios quase foram dizimados. Em povos com pouco ou nenhum contato com os brancos, meras influenzas podem ser fulminantes em dias.
Desde que perceberam os riscos, grandes aldeias traçaram por conta própria planos de autopreservação. Suspenderam idas às cidades, aprofundaram nas matas os parentes mais vulneráveis e bloquearam estradas e rotas fluviais. Ainda em meados de março, quando em Brasília a covid-19 era tratada por "gripezinha" pelo governo, os caiapós definiram meios de prevenção. "Quando a gente começou a ver na televisão que o coronavírus estava matando pessoas, eu não esperei secretário especial de Saúde indígena nem presidente da Funai. Reuni os homens e expliquei que coronavírus não era brincadeira", contou Megaron Txucarramãe, líder dos caiapós do Xingu.
Os esforços são insuficientes. Ameaças externas fogem ao controle dos nativos. Além da exploração de ouro por homens que vêm e vão aos territórios, até agentes de saúde podem ser a porta de entrada do vírus.
Em ofício dramático enviado ao Ministério Público Federal em 20 de julho, líderes ingaricós repudiaram o envio de profissionais de saúde contaminados à comunidade Serra do Sol, em Roraima. O acesso à localidade só é possível por avião, e a remoção urgente dos médicos demandou recursos que não puderam ser dispensados para a testagem dos nativos.
<b>Front</b>
As Forças Armadas rechaçam as acusações de desprezo, por serem os únicos representantes do Estado a chegarem em endereços remotos com cestas básicas, médicos e insumos de saúde. Ressaltam o enfrentamento à atividade ilegal em áreas de preservação por meio da Operação Verde Brasil 2 e chamam a atenção para um inédito decreto de Garantia da Lei e da Ordem ambiental.
Desde 19 de março, está em curso a Operação Covid-19. As mais de 260 ações logísticas de Marinha, Exército e Aeronáutica em comunidades indígenas da Amazônia Ocidental, o Hospital de Campanha em Boa Vista e uma série de intervenções logísticas e sanitárias Brasil afora renderam uma máxima que a Defesa transformou em mantra da dedicação: são 34 mil homens empregados, efetivo superior aos 25,8 mil da Força Expedicionária Brasileira.
De junho para cá, foram quatro operações em aldeias isoladas. Outras 11 estão previstas. "A nossa presença na Amazônia, junto aos índios, e a atenção que a gente dá a toda a comunidade indígena caracteriza a nossa preservação dos ideais de Rondon. Me parece muito bem caracterizada a manutenção dos ideias dele pelo Exército, e não de agora, mas ao longo do tempo", afirmou o secretário de Pessoal, Ensino, Saúde e Desporto do Ministério da Defesa, general Manoel Luiz Narvaz Pafiadache.
A demora para a formatação de um sistema de proteção eficaz na crise sanitária é só mais uma entre as diversas queixas de sertanistas e líderes indígenas à maneira como o governo lida com o índio e com as questões florestais. "Vemos um desmonte das políticas indigenistas. Os militares não podiam estar concordando. Têm que servir ao Estado brasileiro, e não a um posicionamento anti-indígena de um governo", disse a deputada Joênia Wapichana (Rede-RR), primeira mulher a representar os índios na Câmara.
<b>Relacionamento</b>.
Em nota, o Exército informou que medidas de proteção da vida e do patrimônio do índio fazem parte dos seus compromissos. "O Exército Brasileiro é uma das mais antigas instituições defensoras dos direitos dos indígenas e mantém, historicamente, um excelente relacionamento com essas comunidades, tendo o marechal Rondon como referência dessa ligação."
Procurado, Mourão, que é presidente do Conselho da Amazônia, evitou analisar a relação entre o governo e os índios. O chefe de gabinete adjunto, general Álvaro Wanderley, destacou que "o Exército sempre cultuou os seus patronos e os legados por eles deixados, em específico o marechal Rondon".
A Funai, também por nota, informou que investiu R$ 24 milhões em medidas de combate à covid-19, suspendeu as autorizações para ingresso em terras indígenas e distribuiu mais de 365 mil cestas básicas. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>