Um dos fatos mais marcantes da vida de Guilherme Castro Boulos, de 38 anos, candidato do PSOL à Prefeitura de São Paulo, foi quando, aos 19 anos, decidiu trocar a casa dos pais em Pinheiros, bairro de classe média alta, para viver com os sem-teto em um acampamento em Osasco, Grande São Paulo. A mãe, Maria Ivete Castro Boulos, infectologista e professora da Faculdade de Medicina da USP, se recorda: "Guilherme levou uma cama dobrável, um lampião e o porta-malas cheio de livros. Dizia que, para lutar por aquelas pessoas, tinha de viver como elas."
Passados quase 20 anos, ele pode conquistar duas façanhas hoje: chegar ao segundo turno – na pesquisa Ibope/Estadão/TV Globo de ontem, ele aparecia com 16%, em segundo lugar, empatado tecnicamente com Celso Russomanno (Republicanos) e Márcio França (PSB) – e desbancar o PT da posição de líder da esquerda na maior cidade do País, abrindo possibilidades para uma recomposição deste espectro político.
As pesquisas, no entanto, mostram que, se Boulos saiu de Pinheiros, o bairro não abandonou o candidato, e o eleitorado da periferia não abraçou o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Seus votos se concentram entre os eleitores com mais renda e maior escolaridade, ou seja, na classe média alta, de onde veio. A inovadora campanha digital não foi suficiente, até agora, para torná-lo conhecido nas franjas da cidade, onde liderou o movimento por moradia.
Com apenas 17 segundos no horário eleitoral na TV, Boulos não conseguiu se tornar mais conhecido. Segundo o Ibope, a TV ainda é a principal fonte de informação sobre os candidatos para 49% do eleitorado. Entre os mais pobres, o número sobe para 55%. "Não dá para votar em quem você não conhece", repete o candidato.
Antes de ir morar com os sem-teto, Boulos tomou outra decisão radical. Decidiu trocar o colégio Equipe, onde cursava o ensino médio, por uma escola pública perto da casa de seus pais, em Pinheiros. Ele questionava a orientação pedagógica do Equipe, voltada mais para preparar os alunos para o vestibular.
Quando souberam da decisão do aluno, diretores do colégio chamaram a família para uma reunião, fato comum para o casal Maria Ivete e Marcos Boulos, também infectologista e professor da USP. Na conversa, a escola argumentou que Guilherme sabia do projeto pedagógico desde o início do ano letivo. "Eu mudei, mas vocês não mudaram", justificou Boulos, então com 16 anos. "Ele tinha uma argumentação muito coerente. Não houve uma revolta, não houve um destrato ou uma briga", lembrou a mãe.
Um mês depois da transferência, os pais de Boulos foram chamados pela direção da nova escola. O filho havia organizado um motim contra a obrigatoriedade do uso de uniforme. Tirou cópias do Estatuto da Criança e do Adolescente, que impede a proibição da entrada de alunos sem uniforme, e distribuiu entre os colegas. "Em um mês ele já tinha fundado um grêmio e feito um jornal", disse Maria Ivete.
Marcos Boulos lembra que foi nas arquibancadas de estádios de futebol, em meio à torcida do Corinthians, que o filho começou a conhecer e se identificar com a periferia. "Ele fala que ali aprendeu a entender como se movimentavam aquelas pessoas."
Da escola pública, Boulos foi direto para o curso de Filosofia da USP. Depois especializou-se em Psicologia Clínica e fez mestrado em Psiquiatria. Segundo o pai, "ele queria entender o funcionamento da mente". Sua tese de mestrado aborda a influência da participação em movimentos sociais na redução dos efeitos da depressão.
<b>Militância</b>
Àquela altura, dava cursos de alfabetização para adultos usando o método Paulo Freire e escolheu a luta pela moradia, por meio do MTST. Foi numa ocupação do grupo que conheceu Natalia Szermeta, de 33 anos, em setembro de 2005. Nascida e criada no Campo Limpo, distrito da zona sul, Natalia tinha 17 anos e militava no movimento estudantil secundarista quando foi conhecer a ocupação Chico Mendes, em Taboão da Serra. No meio do "mar de lona", como ela recorda, Boulos falava em uma assembleia. O namoro e o casamento só vieram anos depois.
Mãe das duas filhas do candidato, Sofia e Laura, de 10 e 9 anos, Natalia foi balconista de farmácia, atendente em um instituto de pós-graduação, chegou a cursar Geografia na Unesp, em Presidente Prudente, interior paulista, mas abandonou o curso com o nascimento das filhas. Hoje, estuda Direito e é uma das coordenadoras nacionais do MTST. O movimento reúne ao menos 50 mil famílias em 14 Estados.
Recém-casados, eles foram morar próximo ao córrego Pirajuçara. O casal decidiu se mudar para o Campo Limpo e ficar mais perto da família de Natalia. Assim, poderiam trabalhar enquanto os pais dela cuidavam das meninas.
No MTST, Boulos começou a chamar a atenção da imprensa nacional, mas rejeitava a política partidária. O movimento, durante anos, proibia que seus dirigentes se candidatassem. A estratégia de promover ocupações de imóveis particulares ociosos para pressionar autoridades rendeu a Boulos a imagem de radical e algumas detenções.
Em 2012, foi preso ao se opor à ação da Polícia Militar na ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos. As denúncias de violência policial renderam semanas de cobertura da imprensa e Boulos se tornou, enfim, um nome nacional.
<b>Impeachment</b>
Naquela época, Boulos fazia oposição ao governo Dilma Rousseff, mas, aos poucos, foi se aproximando de Lula. A mudança ocorreu durante o processo de impeachment da presidente, ao qual Boulos se opôs e mobilizou o MTST.
Depois vieram a condenação e prisão de Lula, em 2018, quando os sem-teto liderados por Boulos eram a maioria dos manifestantes que foram à porta do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo, para defender o ex-presidente. Imagens de aliados de Lula mostram Boulos chorando ao lado do petista poucas horas antes da prisão.
Neste mesmo período, o líder sem-teto passou a cogitar a entrada na política partidária. O primeiro passo foi a construção da Frente Povo Sem Medo, que passou a ser sua plataforma política. Natalia lembra que a transição foi discutida com a família e com o movimento. "A decisão não foi só do Guilherme. Houve um debate longo no movimento e também em casa."
Lula o convidou para entrar no PT, porém o partido escolhido foi o PSOL. "Não havia consenso no PSOL. Grupos que não gostavam só do engajamento dele contra o impeachment e a prisão do Lula se opuseram", observou o sindicalista Edson Carneiro, o Índio, candidato a vereador pelo PSOL e coordenador da Frente Povo Sem Medo.
Vencidas as resistências, Boulos se filiou ao partido e foi candidato a presidente da República em 2018. A chapa formada pelo líder do MTST e Sônia Guajajara obteve 617.122 votos, 0,58% do total. Foi o pior resultado do PSOL em eleições presidenciais.
Mas a candidatura ajudou a consolidar seu nome no cenário político. Neste ano, depois de se certificar que Fernando Haddad não disputaria a eleição municipal pelo PT, decidiu se candidatar à Prefeitura tendo a deputada Luiza Erundina, de 85 anos, como vice. Nas últimas semanas, os dois se dividem em agendas pela cidade.
Segundo o publicitário Gabriel Gallindo, responsável pela campanha digital, antes do início da disputa o candidato nunca quis aparecer como "prefeitável". "Queria ser ele mesmo", disse.
A campanha na internet explorou a imagem do "Celtinha", único bem que ele tem declarado, ao lado de uma conta bancária, e iniciativas como o "Café com Boulos" e o "Se vira nos 50", em que responde a uma pergunta em 50 segundos.
O mote da campanha é inverter a prioridade do poder público e colocar a população da periferia em primeiro plano, partindo do mesmo ponto onde o ex-radical e agora político começou sua trajetória. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>