Estadão

Líder do grupo Wagner sai ileso de revolta armada, mas outros opositores não têm essa sorte

O líder mercenário Yevgeny Prigozhin comandou uma rebelião armada contra os militares russos – e saiu ileso. Outros que apenas expressaram críticas contra o Kremlin não tiveram a mesma sorte.

Na terça-feira, 28, o principal órgão de segurança nacional da Rússia, o FSB, disse que havia encerrado a investigação criminal sobre a revolta da semana passada, sem acusações contra Prigozhin ou qualquer outro participante, embora cerca de uma dezena de soldados russos tenham sido mortos nos confrontos.

O Kremlin havia prometido não submeter Prigozhin a um processo criminal, depois de entrar em um acordo para que ele interrompesse a insurreição e se retirasse para a vizinha Belarus. O acordo se deu apesar da promessa do presidente Vladimir Putin de punir os responsáveis pela rebelião.

Diante de uma pergunta da <i>Associated Press</i> sobre essa guinada, durante uma teleconferência com repórteres na terça-feira, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, se recusou a comentar.

Que Prigozhin tenha conseguido escapar do julgamento, pelo menos por enquanto, é um duro contraste com a forma como o Kremlin vem lidando com protestos contra o governo, como expressar oposição à guerra na Ucrânia ou questionar o domínio de Putin.

Peskov, em resposta a uma pergunta sobre o assunto, mencionou "a vontade (de Putin) (…) de evitar que os eventos se desenrolassem conforme o pior cenário possível", além das promessas e garantias oferecidas a Prigozhin.

<b>ACUSAÇÃO SELETIVA</b>

Ivan Pavlov, um importante advogado que já atuou em casos de grande repercussão envolvendo o FSB, contou à <i>AP</i> que "as leis não funcionam na Rússia, e quando funcionam, é muito seletivo."

O motivo, segundo Pavlov, é a "conveniência política".

Que o processo contra Prigozhin tenha sido arquivado é "nada menos que uma vergonha".

O líder oposicionista Alexei Navalny, preso, foi jogado em uma cela solitária na colônia penal onde está cumprindo nove anos de pena, por pequenas transgressões de regras prisionais.

"Eu adoraria ver a cara de Navalny na próxima audiência judicial sobre abotoamento incorreto (de seu uniforme) quando souber que um processo de rebelião armada foi arquivado porque a pessoa envolvida nele concordou em ir embora para Belarus", disse Georgy Alburov, aliado de Navalny, em um tweet, na terça.

Quando Navalny foi informado sobre a rebelião por seus advogados durante uma audiência judicial, ele disse ter achado que era uma piada.

"Eles estavam me contando sobre a tomada de Rostov, os helicópteros abatidos, e a coluna armada seguindo em direção a Moscou (…) Fiquei esperando alguém gritar de repente, É uma pegadinha!. Mas ninguém gritou", disse Navalny em uma publicação nas redes sociais.

Por outro lado, Prigozhin tinha ligações de longa data com Putin, e obteve lucrativos contratos de fornecimento para o Kremlin antes de fundar a empresa militar privada Wagner, que já enviou forças para a Síria, países africanos e a Ucrânia.

<b>DESACREDITAR O EXÉRCITO
</b>
Espalhar publicamente "informações falsas" sobre o exército russo ou "desacreditar" a instituição se tornou crime uma semana depois que o Kremlin enviou suas tropas para a Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022. As autoridades usam a legislação para reprimir qualquer um que se manifeste contra a guerra ou se afaste da narrativa oficial.

A repressão está se espalhando pela Rússia, e as forças de segurança estão perseguindo tanto importantes figuras de oposição quanto cidadãos comuns.

Ilya Yashin, político de oposição, foi condenado a 8 anos e meio de prisão pela acusação de condenar as atrocidades cometidas por soldados russos no subúrbio de Bucha, em Kiev. Um colega do conselho municipal de Moscou, Alexei Gorinov, foi condenado a sete anos pelas mesmas acusações.

Em uma publicação feita no Facebook por sua equipe jurídica, Yashin comentou que Prigozhin "esfregou a cara de toda a liderança militar no asfalto, capturou uma cidade e disparou contra aeronaves militares russas".

Mas observou que ele mesmo, Gorinov, e Evgeny Roizman, uma figura de oposição, "ainda são os que desacreditam o exército. Claro."

Sasha Skochilenko, uma artista de São Petersburgo, está sendo julgada por substituir pequenas etiquetas de preço em um supermercado por slogans contra a guerra.Ela passou mais de um ano em prisão preventiva, e pode enfrentar até 10 anos de prisão se for condenada.

Um pai solteiro na região de Tula, ao sul de Moscou, foi condenado a dois anos de prisão depois que sua filha adolescente fez uma pintura contra a guerra na escola.

Segundo o OVD-Info, um importante grupo russo de defesa de direitos que oferece assistência jurídica, até o final de junho 603 pessoas estavam enfrentando acusações criminais por posicionamentos contrários à guerra. Muitas foram multadas por protestos contra a guerra, que as autoridades consideram desacreditar o exército – inclusive aquelas que carregavam pedaços de papel em branco ou o romance de Leon Tolstói, "Guerra e paz".

Prigozhin, que por meses criticou publicamente a liderança militar com insultos cheios de palavrões nas redes sociais, nunca enfrentou essas acusações.

<b>VANDALIZAR CENTROS DE ALISTAMENTO</b>

Prigozhin também admitiu que seus combatentes atingiram aeronaves militares russas durante a revolta, levando à morte das pessoas a bordo.

Vários russos que arremessaram coquetéis Molotov, ou tentaram de alguma forma incendiar os centros de alistamento militar como parte da expressão de sua indignação contra a guerra, foram condenados a longas penas de prisão, embora esses atos raramente tenham causado grandes danos.

Desde o início da guerra, a mídia russa noticiou pelo menos 77 tentativas de atear fogo em centros de alistamento. Muitas resultaram em condenações.

A pena mais longa até agora, de 19 anos, foi dada a Roman Nasryev e Alexei Nuriyev, acusados de atirar coquetéis Molotov contra um centro de alistamento na cidade de Bakal, na região de Chelyabinsk. O incêndio foi pequeno e ninguém se feriu, segundo as notícias.

Nasryev disse em juízo que estava expressando seu "desacordo com a operação militar especial", o termo usado pelo Kremlin para a guerra na Ucrânia.

Kiril Butylin, um encanador de uma cidade nos arredores de Moscou, recebeu uma pena de 13 anos. Ele foi acusado de vandalismo, incitação pública a atividade terrorista e ato terrorista, após pintar uma bandeira ucraniana e escrever um slogan contra a guerra na parede de um centro de alistamento, além de arremessar dois coquetéis Molotov.

As penas para outras pessoas que tentaram incendiar esses centros variaram entre 1 ano e meio e 12 anos.

<b>ACUSAÇÕES DE TRAIÇÃO</b>

Em um discurso à nação no sábado, 24, Putin usou o termo "traição" para se referir à rebelião de Prigozhin. É um delito grave na Rússia, que é julgado em sigilo e quase nunca resulta em absolvição.

Nos últimos anos, essa acusação foi usada contra críticos ao Kremin, cientistas trabalhando em pesquisas internacionais, e mais recentemente, russos que se opõem à guerra e doam dinheiro para apoiar o exército ucraniano.

Na segunda-feira, 26, Valery Golubkin, um cientista aeroespacial de 70 anos, foi condenado por traição, e recebeu uma pena de 12 anos por entregar segredos de Estado a representantes de organizações estrangeiras. Golubkin insistiu em sua inocência, e seus advogados argumentam que ele estava trabalhando em um projeto internacional, e tinha permissão para compartilhar dados com seus parceiros estrangeiros.

No começo deste ano, Vladimir Kara-Murza Jr., uma das principais figuras de oposição, foi condenado por traição por denunciar a guerra em público, e recebeu uma pena de 25 anos de prisão.

No ano passado, o ex-jornalista Ivan Safronov foi condenado a 22 anos de prisão por traição, por repassar segredos militares para a inteligência tcheca e um cidadão alemão. Safronov insistiu em sua inocência, e muitos jornalistas russos consideram que o processo contra ele foi uma vingança por suas reportagens que expuseram questionáveis transações com armas.

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