Marcos Motta: Crise vai retirar 2 bilhões de euros do mercado de transferências

Advogado atuante no esporte há mais de duas décadas, Marcos Motta usa a sua experiência para apontar que a crise financeira provocada pela pandemia do coronavírus servirá para ajustar o mercado de negociações e acelerar processos e mudanças de hierarquia em função da diminuição dos recursos financeiros.

Em sua avaliação, a próxima janela de transferências no futebol europeu, a que antecede o começo da temporada e costuma ser a mais movimentada, terá seu fluxo reduzido em quase 2 bilhões de euros (R$ 11 bilhões) nas principais ligas, o que trará efeitos danosos especialmente para clubes mal organizados, como alguns brasileiros, que dependem da receitas dessas transações para sobreviver.

Isso provocará mudanças de patamar, com a ascensão de clubes médios e a queda de nível de equipes tradicionais, mas endividadas, além do aumento do protagonismo de gigantes como o Flamengo e os maiores times da Europa, aumentando a desigualdade da disputa.

Com a experiência de ter participado diretamente da aquisição de Neymar pelo Paris Saint-Germain em 2017, por 222 milhões de euros(R$ 817 milhões, na cotação da época) junto ao Barcelona, ele diz que uma transação por aquele valor nunca mais será fechada no mercado do futebol.

Motta, que iniciou sua carreira no esporte como dirigente do Flamengo em 1997, trabalha como consultor jurídico em centenas de casos e arbitragens perante tribunais em questões como disputas contratuais, comerciais, disciplinares e regulamentares. Ele aponta que o modelo de atuação no mercado será de frente daqui para a frente no esporte – e em todos os setores.

Confira a entrevista completa:

Como o mercado do futebol vai se comportar ao fim da crise do coronavírus?

O mercado vai beneficiar aqueles que tiverem inteligência e educação administrativa, como Flamengo e Grêmio, no Brasil. Os grandes europeus vão passar por essa. Quem não está preparado, vai ter muita dificuldade. No Brasil, ainda mais, porque nós somos vendedores. O mercado vai se ajustar. Vai ter mercado, mas ele vai mudar. É preciso calma. Não faz sentido no momento em que corpos estão sendo contados, um clube que cortou salários, não renovou contratos, fazer uma contratação de 100 milhões de euros. Seria ruim até para a sua imagem pública.

Há uma previsão sobre quanto o mercado de transferências vai encolher na próxima janela?

Com as contas estranguladas nesse momento, há previsão de uma queda de 28% no valor das transferências das cinco grandes ligas. Veja o caso do Icardi. Ele foi comprado agora pelo PSG por 50 milhões de euros, sendo que o seu valor de mercado na outra janela era de pelo menos 70 milhões de euros. Isso vai retirar do mercado quase 2 bilhões de euros na compra dos jogadores.

Qual será o efeito desse encolhimento do mercado europeu para os clubes brasileiros?

A única vantagem é o câmbio. Mas tem clube acabando com as divisões de base. Preferem apostar em medalhão. Vai ter clube ficando pelo caminho, que não vai conseguir superar a crise, principalmente se o futuro financeiro depender da venda de jogador. Os clubes menores vão estar à mercê dos maiores. E não vejo isso como uma abordagem oportunista. Os clubes estavam valorizando os seus jogadores. O mercado estava inflacionado. Só que a bolha estourou. O mercado vai retomar valores realistas.

Como os principais clubes do mundo vão adequar seus investimentos?

A gente vai ter o mercado mais sofisticado, pontual, muito mais exigente. Não dá mais para testar. A transação precisa ser certeira. Vai haver mais demanda do scout. O modelo será realinhado. Mas o mercado será retomado porque o futebol conjuga bem os aspectos sociais, econômicos e culturais. Todo mundo investe no marketing esportivo porque dificilmente tem esse poder de comunicação e capilaridade do esporte em outros setores.

Os tipos de negociações entre os clubes podem mudar?

A gente vai ver operações de empréstimo com opção de compra ou obrigação de compra, muitas operações criativas, como venda com opção de recompra. Isso se dará pela necessidade de se realizar ajustes contábeis. Mas o topo da pirâmide precisa das grandes movimentações, dos ídolos. A personalização é importante, e é ela que faz a comunicação com o mercado, converte e engaje. Vai ter grandes contratações, mas com a transformação do tipo de negócio. O acesso ao crédito está muito mais difícil. Vai demandar gente com visão holística e não apenas aqueles que enxergam o jogador como mercadoria.

Quanto tempo levará para o valor recorde da venda do Neymar ao PSG ser superada?

Esse recorde não será batido, por uma série de mecanismo de controle do mercado, como o fair-play financeiro. E agora tem a covid. O mercado apertou o botão "reset", vai ter um reajuste, uma deflação. O mercado vai se reajustar por perda de receitas de direitos de transmissão, da receita do "matchday". E a retração de uma temporada leva reflexos para as seguintes.

Internamente, como você imagina que passará a se comportar o mercado brasileiro?

Haverá troca de jogadores, empréstimo com opção de compra. Clubes com mais finanças, mais organizados, como Bahia, Flamengo, Athletico-PR, vão se destacar. Vai acentuar a mudança da dinâmica da hierarquia brasileira. Clubes tradicionais vão dar espaço para outros que eram de meio de tabela, como o Fortaleza. E o Flamengo despontará e vai mostrar mais força.

Como o futebol brasileiro pode se tornar mais competitivo em um cenário de crise?

Quando a Uefa flexibiliza o fair-play financeiro e o Brasil não faz nada, você tem muito mais dificuldade. Eu defendo que seja permitida a volta do terceiro investidor nos direitos (econômicos) do jogador. Não pode ser completamente aberto sem regras, mas algo controlado e transparente. É preciso oxigenar o mercado, acabar com gargalos que impeçam investimentos no futebol brasileiro. Ou a gente estoura a bolha ou vai continuar perdendo. Só que agora vamos perder de muito. Aqui não tem o ambiente corporativo e seus gatilhos para ajudar como ocorre na Europa.

O modelo de clube-empresa pode ser uma solução para o futebol brasileiro?

Os três clubes mais ricos do mundo são Barcelona, Real Madrid e Manchester United, o único desses que é clube-empresa. Clube-empresa não é fim, é meio. No Brasil tratam como fim e vão quebrar a cara. O que importa não é a estrutura, mas a mentalidade. A administração desses três clubes é completamente diferente, mas eles tratam o futebol como negócio e têm uma mentalidade corporativa, estão sujeitos a regras de transparência e compliance. O Flamengo já tem essa mentalidade e não precisou virar empresa.

Como advogado, o que mudou no seu trabalho desde o início da crise do coronavírus?

Mudou o tipo de ligação. Nesse período do ano, estaria recebendo ligações para assessorar transferências, para ajudar com contratos de TV e mídia, para ajudar em campanhas de varejistas. Hoje, as ligações são de reajuste de mercado, renegociações de contrato, papos sobre perspectivas, participação em comitês de crise, de inovação. Tem sido assim nesses 75 dias e vai continuar por um bom tempo nessa pegada, porque as mudanças vão ficar. Ninguém voltará a ser como antes, todos estão revisando o modo de operação no mercado, seja clubes, empresas de varejo, de audiovisual, artistas ou atletas.

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