"Você sabia que de cada 10 assassinatos no Brasil, oito são de pessoas NEGRAS como eu? Essa não é uma luta só dos negros, essa é uma luta de TODOS. Não basta não ser racista, você tem de ser ANTIRRACISTA." A frase foi postada pela pivô Érika de Souza no Twitter poucos dias depois do assassinato do negro George Floyd por um policial branco, em Minnesota, nos Estados Unidos.
Filha de mãe negra e pai branco, a jogadora de 38 anos, com diversos títulos na carreira, incluindo o da WNBA em 2002, liga americana de basquete, quis ser ouvida, afinal já sentiu na pele o preconceito. Em entrevista ao <b>Estadão</b>, ela mergulhou na experiência de vida para tocar na ferida que insiste em ficar aberta.
Você se posicionou publicamente contra o racismo após o caso do assassinato de George Floyd… Qual o seu sentimento naquele momento?
O esporte dá uma falsa impressão de que não temos racismo, porque temos muitos ídolos negros, como Pelé, Michael Jordan, Serena Williams… É uma falsa ideia de que os negros são valorizados. Eu, pessoalmente, nunca tive problema nas equipes em que joguei. Minha mãe e minha avó são negras de pai e mãe e meu pai é branco. Sempre tive para mim por que minha mãe tem de ser empregada doméstica e meu pai tratado como o homem branco? É triste ver isso na sociedade. Tenho um irmão branco dos olhos azuis. As pessoas não dizem que é meu irmão. Tenho também duas sobrinhas, uma de pele negra e outra branca com os olhos azuis, e já ouvi muitas vezes pessoas falando que não era filha do meu irmão.
Há um racismo enrustido?
É um pouco mais escondido. As pessoas sentem vergonha de assumir, lutar contra. É mais no sentido do oba-oba, como aconteceu agora neste caso. Começou nos Estados Unidos, passou pela Europa e aí o Brasil se manifestou. Isso tem de acontecer sempre. Temos negros no esporte e em todos os setores. Temos de protestar, apoiar, lutar para que isso não aconteça. Nas faculdades, por exemplo, somos uma cota mínima. Por quê? Os brancos são mais inteligentes? Ou o negro não pode entrar em uma sociedade de brancos? Todos somos iguais, temos o mesmo direito.
Como você vê o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, afirmar que não existe racismo no Brasil?
É revoltante. Claro que existe. As pessoas só tentam minimizar. Se não existe racismo, então temos de mostrar. Os negros precisam ter o direito de viver em uma sociedade igual. Temos de acabar com isso. Lutar por uma mudança para que isso não venha afetar o futuro da minha sobrinha, de filhos ou irmãos de outras pessoas. Temos de ensinar este valor.
O que poderia ser feito?
Temos de começar sendo antirracistas. O racismo precisa ser combatido diariamente. Não adianta fazer postagem na internet, camiseta… Temos de transformar ação em prática. Começar desde casa, passando pela escola. O amiguinho não pode sentir vergonha do outro amiguinho porque ele tem uma pele mais escura. Deveria ter uma matéria para explicar, dizer que ele não tem de existir. As crianças precisam entender que uma vida negra importa, assim como uma branca. Minhas sobrinhas nasceram uma com o olho azul e outra de cabelo crespo, mas são descendentes da mesma avó, da mesma bisavó e da mesma família. As pessoas precisam entender que temos uma miscigenação no Brasil.
Todos os atletas precisam se posicionar?
O atleta tem uma enorme visibilidade, ele alcança muitas pessoas. O nosso papel não é apenas dentro de quadra. Temos de nos posicionar. Claro que temos medo de que alguma coisa possa acontecer conosco, mas acredito que todos os atletas precisam se posicionar, não podemos deixar passar. Temos de mostrar que todos nós somos iguais. Os atletas, hoje, são mais coincidentes, estão preocupados com estas questões. Quando uma pessoa é atacada todos nós sofremos. Temos de sofrer juntos, sentir esta dor e tentar acabar com isso.
Viu o vídeo do George Floyd?
Vi porque passou muitas vezes. E nem sequer por isso vai acabar. As pessoas foram para rua e agora ninguém mais vai sofrer racismo? Infelizmente vai acontecer outra vez. As pessoas vão sair novamente, vão protestar, dar a cara a tapa, como fizeram os atletas nos Estados Unidos, mas não vai adiantar. São as pessoas que estão lá no alto, com poder, que precisam fazer algo para que possamos ter uma mudança. Os policiais precisam ser treinados para lidar com estas situações. Eles estão aí para nos defender, não para matar.
Outro assunto importante. Homens e mulheres, um dia, serão tratados como iguais no esporte?
O preconceito para nós mulheres vai muito além. Nunca fui despeitada em quadra por torcedores, como já aconteceu com algumas companheiras. Mas há um tratamento diferente. Eu sou campeã da WNBA, conquistei oito títulos na Espanha, tenho uma história na seleção e nunca ninguém me ofereceu um patrocínio. São exemplos bobos que pesam. Tem muito jogador que conquistou muito menos, que nunca jogou pela seleção, e recebe material esportivo. Acontece muito. A única justificativa que enxergo é pelo fato de eu ser mulher. Como eu já escutei e outras jogadoras também. Porque é mulher, é mais difícil. Isso não justifica. Temos de falar, tenho de incentivar as outras meninas a falar, porque, caso contrário, vai passar de geração para geração.
Como está lidando com este momento de pandemia?
Está sendo difícil. Para o atleta treinar em casa é muito diferente de estar na quadra, ou até mesmo na academia. Mas espero que tudo possa voltar ao normal em breve, que todos possam realizar o trabalho diário normalmente. Meu marido e meu cunhado, por exemplo, têm uma academia e ela está há três meses fechada. De onde vem o ganha-pão? Eles estão buscando alternativas para não ter de atrasar contas.
Você está sem receber de nenhuma equipe?
Tenho acordo com o Sampaio (Correa), acertei com eles antes do final da temporada na Espanha, mas nunca me apresentei. Assim que voltei (da Europa), já tínhamos esta situação da pandemia e tive de ficar em casa. Então estou sem receber salário, porque eles só iriam me pagar a partir do momento que eu me apresentasse. Por isso espero que isso possa acontecer logo.
A Liga de Basquete Feminino tem reunião na próxima terça para definir se o torneio será retomado. O que pensa disso?
Nós temos um grupo de WhatsApp e conversamos sempre sobre isso. Se for com 200% de chance de que seria com segurança, com todos os cuidados necessários para não prejudicar ninguém, jogadoras, com teste para todos, eu sou favorável ao retorno. Será necessário um investimento financeiro, mas acredito que algumas empresas possam se interessar neste momento porque também precisam de visibilidade.
O Brasil está fora de Tóquio. Aos 38 anos, ir para os Jogos de Paris-2024 é possível?
Está distante. Tenho o sonho de ser mãe. Acho que para o Mundial (2022, na Austrália), talvez. Conversei com o Diego (Falcão, preparador físico da seleção) e ele me apresentou um médico do esporte. Já me cuidava, até porque meu marido é personal trainer. Com ajuda do Diego e agora do Gil, tenho vontade de jogar o Mundial com 40 anos e me despedir. A minha despedida seria em Tóquio, mas infelizmente não conseguimos classificar e agora vou esticar um pouquinho.