Em novo choque com a posição defendida pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva, a delegação da Argentina defendeu na reunião do Mercosul que o bloco mude suas regras e autorize os membros a firmar acordos comerciais bilaterais com outras nações e grupos. As atuais normas impedem esse tipo de negociação comercial país a país. Os ministros das Relações Exteriores também queixaram-se do estágio de negociações com a União Europeia.
A chanceler da Argentina, Diana Mondino, representante do presidente libertário Javier Milei, defendeu que o bloco tenha "flexibilidade" e aceite, a depender da situação, que um país feche acordos de livre comércio isoladamente. Ela falou em reunião do Conselho Mercado Comum, neste domingo, dia 7, antes da chegada dos presidentes, em discurso que pela primeira vez detalhou as intenções do governo Milei no bloco.
"Pensemos na possibilidade de que haja acordos bilaterais. É muito difícil que todos estejam de acordo em todos os temas. Eventualmente pode haver um caso em que um acordo comercial bilateral seja conveniente", disse a ministra argentina, que defendeu uma revisão gerencial sobre o funcionamento do Mercosul.
Foi a mais longa intervenção de um chanceler e Mondino voltará a falar nesta segunda-feira, dia 8, já que Milei boicotou a cúpula e não viajou a Assunção, no Paraguai. "São iniciativas positivas para que possamos trabalhar melhor, não eliminar nem matar nada."
Com isso, a Argentina se somou a antigo pleito do Uruguai, que sob o governo de centro-direita de Lacalle Pou também levantou esse pleito, com foco em um tratado de livre comércio com a China. Montevidéu argumenta que não haveria prejuízo em sair na frente nas negociações com Pequim.
A resposta do Itamaraty já estava dada. Antes da cúpula, a delegação brasileira disse que somente estaria aberta a uma negociação em conjunto, como bloco – jamais de forma bilateral. A China é o principal parceiro comercial do Brasil desde 2009. A chancelaria brasileira afirma que o Tratado de Assunção é "claro" ao não permitir negociações isoladamente, em que pese a insistência uruguaia, que agora ganha adesão dos argentinos.
O Brasil e o Paraguai defendem a manutenção das regras atuais. Ambos dizem que devem negociar em bloco. Qualquer alteração no tratado dependeria de um acordo amplo com todos os membros, já que as decisões do Mercosul são tomadas por consenso.
No caso do Paraguai, há ainda uma questão geopolítica de fundo. Embora se diga aberto a negociação com a China, um avanço é considerado por diplomatas remotíssimo ou de chance quase nula, já que o país sul-americano é um dos principais aliados diplomáticos de Taiwan, a ilha que Pequim considera rebelde e planeja retomar.
"As ações realizadas em matéria de relações externas devem ser acordadas e desenvolvidas em conjunto, convenientemente analisadas com o critério da relação custo-benefício, atendendo a interesses genuínos e descartando segundas intenções", disse o chanceler paraguaio Rubén Lezcano. "A conjunção dos mercados é uma propriedade compartilhada que não pode ser objeto de disposição individual. Devemos levar em conta que a principal atratividade do bloco está no mercado unificado, pela sua dimensão e capacidade de consumo."
Além da questão negocial, a delegação argentina também divergiu do Brasil – como esperado – em uma série de pontos discutidos nas reuniões prévias à chegada dos presidentes. O impacto das posições de Milei sobre o bloco restou evidente, apesar de sua ausência ter esvaziado a relevância do bloco.
A delegação brasileira já tinha explicitado uma divergência com a Argentina ao defender a tese de golpe na Bolívia – de forma isolada, além do próprio país. Milei afirma que a quartelada ocorrida no fim de junho em La Paz foi uma fraude. Nos bastidores, a chanceleria argentina se opôs ao avanço de pautas da agenda socioambiental, de mulheres e identitária. Ativistas LGBTQIA+ tem apontado retrocessos com veto a discussões e bloqueio de declarações e termos
Também repercutiu na Argentina a informação de que a delegação de Mondino se incomodou com a assinatura de um acordo para promover recursos e alcance ao setor audiovisual e do cinema – com o qual Milei trava uma batalha ideológica no país. E surpreendeu-se com o fato de o Brasil ter mencionado que colocou em vigor um acordo de 2011, de livre comércio entre o Mercosul e o Estado da Palestina – em gesto político em favor dos palestinos, enquanto Lula vive um momento de quase rompimento de relações com Israel por causa da guerra na Faixa de Gaza. Milei, por sua vez, apoia incondicionalmente Israel e já deixou de ser reunir com países árabes.
Em recados políticos, o chanceler Mauro Vieira disse que o Mercosul deve trabalhar para superar rivalidades. O anfitrião Lezcano disse que o Paraguai concordava com um Mercosul "pragmático".
<b>União Europeia</b>
Os chanceleres de países do Mercosul reclamaram do andamento das negociações com a União Europeia (UE) e defenderam priorizar as tratativas mais promissoras com potenciais parceiros abertos a concluir acordos de livre comércio de forma mais célere.
Os ministros das Relações Exteriores realizaram a reunião do Conselho Mercado Comum. Os entraves ao acordo com a UE, em tratativas há 25 anos, motivaram críticas de Argentina, Uruguai e Paraguai. Em paralelo, os países do Mercosul se dividiram e passaram a entabular conversas com países da Ásia, América Central e Oriente Médio.
Entre as tratativas que ganharam impulso recentemente estão Emirados Árabes Unidos, El Salvador, Japão, República Dominicana, Panamá e o bloco Efta – a Associação Europeia de Comércio Livre, formada por Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça.
Já houve também uma rodada inicial de conversas com o Japão. Na Ásia, o primeiro acordo foi fechado no ano passado, com Cingapura Há contatos com Vietnã, Indonésia e Canadá.
"É indiscutível que o Mercosul até agora não conseguiu facilitar acesso aos grandes mercados fora da zona, no resto do mundo. Nosso bloco não tem acordos com os países que dinamizam. É verdade que quase já temos, sim, mas ainda não, não terminou o acordo UE-Mercosul. E no futuro próximo temos que ter relação com os países que hoje dinamizam o mercado", criticou a argentina Mondino.
O Brasil coordena as conversas com a Comissão Europeia, alvo de insatisfações. O governo Luiz Inácio Lula da Silva decidiu questionar pontos já fechados, como o capítulo de compras governamentais, por entender que o acordo estava desequilibrado e que havia sido quebrada uma confiança, quando a UE passou a exigir compromissos ambientais adicionais.
Segundo o governo Lula, essas condições e leis paralelas contra o desmatamento aprovadas pelos europeus poderia levar a punições unilaterais ao agro sul-americano. Agora, a diplomacia afirma que houve avanços e que faltam apenas detalhes.
"No caso das relações com a União Europeia, constato que, não obstante as eleições realizadas para o Parlamento Europeu, nosso objetivo de alcançar um acordo ambicioso e equilibrado segue vigente. Foi possível estabelecer uma dinâmica positiva nessa negociação e, inclusive, chegamos a entendimentos em temas centrais para o Brasil, como compras governamentais. Vemos os próximos meses como grande oportunidade para lograr os avanços necessários para a conclusão de um acordo que buscamos há mais de duas décadas", disse o ministro Mauro Vieira.
"Vimos como o processo com a UE se mostrou outra vez demorado e com muita incerteza, evidentemente muito contrário aos interesses e à visão do Uruguai. Deveríamos ter concluído as negociações no ano passado. Após tantos anos, o panorama que resta para este ano está longe de ser melhor do que o ano passado, e isso era previsível. Esta negociação estava praticamente fechada e deveríamos ter corrido o risco de reabrí-la naquela momento", afirmou o chanceler Omar Paganini.
A despeito da visão cética, o uruguaio compartilhou que seu país mantém o compromisso e que o acordo com a UE é prioritário para as economias da região, com consequências inclusive geopolíticas. Já a negociação com o Efta, disse ele, ainda está "longe de uma assinatura rápida" e "não avançam como o esperado". Ele lembrou se a Índia conseguiu concluir um acordo similar e disse que "não é possível que o Mercosul não consiga fazê-lo".
O Uruguai, que defende uma negociação com a China, inclusive de forma isolada, entende ser positiva a abertura da negociação com os emiráticos, embora reconheça que há "complexidade".
As negociações externas do bloco foram definidas como escassas pelo Paraguai. O país anfitrião afirmou que o bloco saiu da "letargia" de uma década sem firmar novos acordos apenas no fim do ano passado, quando assinou com Cingapura O país coordenou as conversas com os emiráticos e afirmou que vai trabalhar para concluir em "curto prazo".
"Queremos ser claros e reiterar que na definição das nossas próximas frentes de negociação nos concentramos nos países que têm uma vocação de abertura semelhante. Não podemos ficar presos em processos nos quais não avançamos", disse Lezcano, que lidera pelo Paraguai uma negociação recém-iniciada com os Emirados Árabes Unidos. "Desejo enfatizar a determinação do meu país em priorizar acordos equilibrados. Não vamos ceder nem aceitar imposições de políticas protecionistas dos países desenvolvidos, que, com discursos bem-intencionados, tentam estabelecer medidas que acabam por se tornar obstáculos ao comércio."
O ministro brasileiro disse que espera poder levar adiante negociações durante o atual semestre com a República Dominicana e destacou o recente interesse do Panamá – o presidente Raúl Mulino participa da cúpula, em gesto de abertura para um futuro acordo.
Para Vieira, o acordo celebrado em dezembro com Cingapura no ano passado foi "fruto da estratégia acertada de dar prioridade às frentes com resultados possíveis". Ele disse ter expectativa de que assim siga a conversa com os Emirados Árabes.
"Vemos grande potencial nas discussões com esse país, que se posiciona como um dos importantes parceiros comerciais e grandes investidores no Brasil e nos países do Mercosul. Nossa expectativa é que seja conferida prioridade a essa frente, com vistas à conclusão das tratativas ainda em 2024. Para isso, podem contar com o engajamento do governo brasileiro", disse o chanceler de Lula.