Nas novas relações com a arte dentro do que se chama novo normal, algumas práticas se impõem enquanto muitos esperam a volta às atividades do pós-quarentena sem saber exatamente, de fato, o que será esse novo normal. Talvez, na música, ele já tenha chegado. Assim como o escoamento do material produzido pelos artistas passa obrigatoriamente pelas artérias das lives, o ensino musical, a primeira ponta desse ciclo, algo que vai formar a inédita geração de músicos quarentenados ou, simplesmente, desenvolver habilidades em plena pandemia, já não é mais o mesmo. Para o bem e para o mal.
Os primeiros reflexos desse já normal que poucos enxergam é a profusão de grandes instrumentistas disponíveis como professores de música. Gente que tem história, conhecimento e, em muitos casos, já lecionava, mas que, na paralisia dos shows e na escassez de gravações, colocou mais força nas aulas e nos cursos online para compensar seus orçamentos. O próprio ensino de música também se transforma com a criatividade de muitos professores online, que saem dos métodos obrigatórios e uniformizantes, considerados por críticos do ensino formal como castradores da criação individual, para trabalhar sobre bases mais humanistas.
O pianista Emílio Carrera já trabalhava sobre essas ideias quando o mundo da música baixou as portas. Sua história mais visível começa como pianista dos Secos & Molhados, em 1972, passa pela música de Walter Franco no álbum Revolver, de 1975, e se embrenha por estúdios de jingles publicitários por mais de uma década, sendo 11 anos só na agência DPZ, algo que treinou seus ouvidos para a necessidade do cliente. Agora, ele acredita que o estudo acadêmico esteja passando por uma transformação, estimulada pela demanda de urgência dos próprios alunos. "A experiência mostra que é possível queimar etapas de forma lúdica e fazer do estudo algo mais prazeroso."
Seu método com iniciantes, se é que chama assim, parte de uma música que tenha uma ligação afetiva com o aluno. E é a partir dessa música, e de todas as variáveis que ela permite, que o interessado aprenderá ritmo, harmonia, digitação, levadas. "Vou adaptando essa música às condições técnicas do aluno que a escolheu. É uma maneira de não ficar estudando o Bona (tradicional livro de solfejo musical) por muito tempo."
O bandolinista Hamilton de Holanda, um dos mais produtivos músicos de sua geração, também tem colocado foco no ensino. Assim que se viu impedido de subir ao palco, abriu logo três frentes para falar de ensino musical. Seu curso online, longe dos roteiros acadêmicos, mas abrindo um caminho a partir deles, se chama PiMB, Princípios da Improvisação na Música Brasileira. Uma das séries traz sete aulas, cada uma contemplando um gênero: polca, maxixe, choro, samba, frevo, baião e valsa, com um conteúdo para ser adaptado por qualquer instrumento. Ele grava agora um novo pacote, com os oito hábitos criativos do músico improvisador.
Hamilton, de formação letrada pela Universidade de Brasília, diz que há uma linha de pensamento que precisava ser incorporada pelas aulas. Os garotos e garotas de hoje não são mais os estudantes que ficavam dois meses estudando duro para tirar a Suíte Retratos, de Radamés Gnattali. "Os jovens têm uma velocidade de pensamento muito mais rápida. Se eles quiserem, podem ver (o pianista) Chick Corea ensinando seus temas. Música não pode mais ter um ensino sofrido, não pode ter sofrimento." Além do curso online, Hamilton faz ainda uma live chamada Nosso Bando, todas as segundas, às 10 h, com bate-papo sobre improviso, em seu canal no YouTube. Já participaram músicos como o violonista Lula Galvão e o gaitista Gabriel Grossi. Já às quintas, às 16 h, ele comanda o Ao Live, tirando dúvidas de interessados, e, acredite, eles não são apenas músicos, sobre improviso melódico, tempo interno e como criar um novo trabalho.
O guitarrista de blues Marcos Ottaviano colhe seus investimentos feitos mesmo antes de tudo virar online. Ao lado de sua carreira instrumental, que o faz ser reconhecido como um dos maiores guitarristas de blues do País, Ottaviano investiu em aulas desde 1991. Criou um método e escreveu um livro, Guitarra Blues – Do Tradicional ao Moderno, que já está no segundo volume, e viu um aumento de procura desde o início da pandemia. "As pessoas passaram a estudar mais música, estão investindo mais", diz. Suas aulas têm tomado todo o dia, sobrando poucas janelas. Uma prova foi o convite para que fizesse uma foto para esta página na última quinta-feira, 2. "Cara, lamento muito. Gostaria de participar, mas vou ter que dar aulas o dia todo." Sinais de que quem tem se movimentado na direção certa nunca teve tanto trabalho.
Outro dos grandes guitarrista brasileiros de blues, Nuno Mindelis, dos mais respeitados no exterior, fez uma enquete em suas lives costumeiras com a pergunta: você teria aulas comigo durante a pandemia? Quase 50 pessoas, entre seguidores do Instagram e Facebook, disseram que sim. Ele ainda não começou o curso e, por enquanto, só tem a ideia de que elas seguiriam os instintos que o fizeram aprender música na juventude. "Seria para ensinar música do jeito que eu mesmo aprendi", afirma Nuno, enquanto seus possíveis alunos esperam por novidades. Um fenômeno curioso são as lives em que aparece improvisando sobre bases gravadas. "Muitos me dizem que estão aprendendo direto com as lives." Uma modalidade de algo que no novo e atual normal pode já ganhar o nome de live class. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>