Cadê o Sol? Este é o nome do primeiro livro de poesias de Ivo de Souza, o poeta dos mares, de 69 anos. Caiçara, natural de Ilhabela, litoral norte de São Paulo, ele encontrou na adversidade impulso para a produção literária e para o ativismo em detrimento da falta de cultura e dos problemas de mobilidade urbana na cidade.
Ivo é formado em engenharia civil, matemática, pedagogia e pós-graduado em gestão ambiental. Foi um dos responsáveis por diversos empreendimentos que hoje cortam o horizonte da cidade. “Segundo o consenso geral, eis aí um perfil que não se encaixa em um escritor, muito menos em um poeta. Mais uma vez, como em tantas outras, o consenso geral errou profundamente”, escreveu o jornalista e escritor Castelo Hanssen sobre o perfilado.
Ele é casado com a pedagoga Isabel Moreira desde 1980, ano em que se mudaram para Guarulhos. Juntos são pais de Arthur, Gisele, Ana Paula e avós da pequena Maria Valentina.
A primeira vez que encontrei o poeta dos mares foi em uma livraria. Ele me apresentara sua obra, composta por poemas acrósticos, uma composição literária normalmente poética em que as letras iniciais, do meio ou do fim formam nomes ou palavras em concreto. Poesia pura. Mostrou-me o escritor gentil, inteligente e sensível, sem nenhuma limitação aparente.
Mais tarde, a bengala dobrada sobre o seu colo denunciou sua cegueira quase que total. Ivo perdeu a visão aos 45 anos, depois de um glaucoma, uma doença silenciosa e de difícil diagnóstico. “Via ‘arco-íris’ em torno das luzes. Um dia, por volta das três horas da manhã, comecei a sentir uma dor muito forte nos olhos e fui desesperado para o médico. Ali fui diagnosticado com glaucoma e comecei a fazer um tratamento com colírios, aplicação de laser. Fui perdendo a visão periférica, primeiro, até se tornar tubular”, conta.
Durante 15 anos, fez quatro aplicações a laser, duas em cada olho, até que perdeu 100% de uma visão (a do olho esquerdo) e no outro ficou com apenas 5%. “Nessa distância, de um metro e meio, por exemplo, eu consigo ver o seu rosto sem definição. Vejo uma metade do rosto e depois a outra”, contou-me meses depois do primeiro encontro na livraria, em seu apartamento no bairro do Picanço, região central de Guarulhos.
Conversamos na sacada, próximos, rodeados por orquídeas cuidadas pelas mãos de Isabel. Ali, confidenciou a depressão que viveu por quase dois anos enquanto perdia a visão. “Foram dois anos terríveis. Passei muito estresse e depressão para ser sincero. Tinha problemas à noite, chorava na hora de dormir. Durante o dia eu tentava passar a melhor imagem possível, mas à noite éramos eu e Deus. Era realmente muito difícil”.
A família foi seu porto seguro, já que o “sol se afastara” e juntos procuraram diversas atividades terapêuticas para atravessar a depressão. Danças, apresentações culturais, mas nada lhe preenchia verdadeiramente. “Aquilo me ajudou. Não tinha só cegos, havia gente com outras deficiências muito mais limitantes do que a minha falta de visão, e aquilo me deu um up”, conta Ivo, confidenciando que nos primeiros momentos sentiu-se meio que “bobo” fazendo apresentações culturais.
“Quando terminou a apresentação caí a chorar no meio do caminho. Intimamente estava me sentindo arrasado, medíocre, embora a atividade fosse interessante”, desabafou. E assim, motivado pelas atividades culturais, voltou aos rascunhos que deixara no passado. Encontrou seus acrósticos e passou a escrever mais e mais.
A literatura – O livro Cadê o Sol? é resultado dessa busca de rascunhos e de sentido na vida. “Eu uso o Sol, exatamente como a minha visão. Cadê? Aquilo representava um pouco da minha trajetória". O livro é um convite a observar a vida sem visão a partir daquele que foi perdendo a luz.
Ivo superou a depressão e a si mesmo, tornando-se referência literária nas cidades em que nasceu (Ilhabela), viveu por um período (São Sebastião) e mora atualmente (Guarulhos). São muitos os prêmios e homenagens recebidos ao longo dos últimos quase 15 anos, exatamente o período após descobrir o glaucoma.
Para escrever, Ivo utiliza as “novas tecnologias”. Senta em frente ao seu computador e coloca o zoom em 170%. Conta com o auxílio de um teclado com letras grandes. “Antes de eu achar esse teclado eu usava adesivos com letras grandes em cima dos teclados. Quando comecei eu escrevia em bilhetinhos no papel, hoje eu uso o Android (sistema operacional de smartphones). Eu coloco a uma distância de quatro dedos do nariz vou teclando e salvo na tal nuvem. Está tudo na nuvem”, explicou divertido.
“Agora ficou mais fácil. No momento da inspiração eu pego o Android, teclo e pronto”, confidenciou o escritor de dois livros, o já citado Cadê o Sol? e O Uivo do Vento e Outras Maresias, além de participações em antologias, como Amor entre Letras. A poesia que dá nome a seu primeiro livro recebeu em 2010 o prêmio “Nhô Bento”, do 27º Concurso de Poesia da cidade de São Sebastião. Em outras duas ocasiões, em 2004 e 2014, foi laureado com o prêmio literário da cidade.
Em junho, o escritor tornou-se membro da Academia Guarulhense de Letras (AGL), ocupando a cadeira número 34. “Foi uma honra muito grande. Queremos difundir o gosto pela literatura, pela leitura. Os brasileiros de um modo geral não leem muito e acho que Guarulhos tem um celeiro muito bom de escritores. Tem poetas maravilhosos, historiadores, há vários e bons. Penso que esse primeiro prêmio concedido recentemente a escritores veio para mostrar esses talentos não conhecidos”.
Para o escritor, a falta da literatura na vida é um fator limitante a qualquer cidadão, muito mais do que a própria cegueira. “A literatura pode nos levar a ver o Sol”, disse, apontando os desafios que enfrenta diariamente para se locomover na cidade. "Na rua eu uso bengala principalmente para mostrar para as pessoas que estão ali andando que eu sou um deficiente visual, para que elas se desviem de mim".
Para o engenheiro, as cidades estão mais adaptadas, mas ainda de modo precário àqueles que têm mobilidade reduzida. “Nas faixas brancas de pedestres, por exemplo, quando há uma rampa com piso tátil, ao atravessar a rua, do outro lado não há mais rampa e sim uma guia de 15 centímetros de altura. Isso é um obstáculo”.
Recentemente Ivo de Souza foi eleito mister Guarulhos, dada a simpatia e elegância com que “desfila” por aí. Ele participa do “Artistas Visitantes”, um grupo que surgiu no Centro de Referência do Idoso (CRI) e que visita periodicamente asilos da cidade, levando arte e carinho para a terceira idade guarulhense. E na esteira dessa simpatia, as bandeiras da literatura e da mobilidade ganham espaço e vez na cidade.