Estadão

A Hora do Lobo ecoa Dogville de Von Trier

Radicada em Paris há sete anos, a diretora de teatro Christiane Jatahy rejeita o rótulo de imigrante em terras europeias. "Minha casa é no Rio, onde estão o meu cachorro e o meu gato, tudo o que faço é relacionado ao meu país", afirma a encenadora e dramaturga carioca, de 55 anos, o nome mais internacional das artes cênicas brasileiras da atualidade. A prova indiscutível é o Leão de Ouro da Bienal de Veneza, recebido em 2022 pelo conjunto da sua obra, conquista inédita para um criador nacional.

Faz quatro anos que Jatahy não exibe seus trabalhos em solo brasileiro. O último foi <i>O Agora Que Demora</i>, em maio de 2019, sequência do projeto <i>Nossa Odisseia</i>, inspirado na obra de Homero. "Sempre existe uma melancolia de viver fora, é preciso ter estômago", diz ela, que ameniza a saudade se cercando de colaboradores conterrâneos na sua equipe. "Para mim, novos mundos foram abertos e o diálogo com diferentes culturas me trouxe perspectivas como artista que eu nem imaginava."

Jatahy comprova sem esforço suas teorias. Tanto a de que continua uma artista brasileira como a de que soube aproveitar a acolhida internacional. O espetáculo <i>A Hora do Lobo</i>, em cartaz no Teatro Anchieta do Sesc Consolação, é a primeira parte de <i>A Trilogia do Horror</i>, reflexão sobre a ascensão da extrema direita em vários países.

<b>NOVA VIDA</b>

A <i> A Hora do Lobo</i> ganhou os palcos no Festival de Avignon, na França, em 2021, e sua inspiração vem do filme <i>Dogville</i>, do cineasta dinamarquês Lars von Trier. No longa, Grace (papel de Nicole Kidman), perseguida por uma quadrilha, busca asilo em um lugarejo habitado por cidadãos de bem. Ela acredita que lá poderá recomeçar sua vida, mas, aos poucos, é explorada e violentada por todos. "Gosto de trabalhar a partir de uma base, em uma espécie de reescritura de uma obra, e escolhi Dogville porque não podemos mais repetir essa história", justifica.

Na atual versão, Graça (interpretada por Julia Bernat) é uma mulher que foge do Brasil e, em um país estrangeiro, encontra refúgio em um teatro, aceitando participar da experiência de trabalhar em um roteiro que modifica a trama de <i>Dogville</i>. A peça, falada em português e francês, foi criada na Comédie de Genève, na Suíça, e conta com nove atores – cinco franceses, três suíços e dois brasileiros. O trabalho dá sequência à pesquisa que consagrou Jatahy, o diálogo entre a ação teatral e a cinematográfica, com a filmagem e a edição simultânea de tudo o que acontece no palco.

Essa apropriação da linguagem audiovisual no palco foi o passaporte da encenadora. Em meados da década de 2000, a artista se destacou no Brasil pelos espetáculos <i>A Falta Que nos Move</i> e <i>Corte Seco</i> e virou alvo dos festivais internacionais. Em 2011, com a peça Júlia, releitura de <i>Senhorita Júlia</i>, de Strindberg, as portas do mundo se abriram e, na sequência, <i>E Se Elas Fossem para Moscou?</i> (2014), revisão de <i>As Três Irmãs</i>, de Chekhov, consolidou o prestígio internacional. Hoje, Jatahy é artista associada do Odéon-Théâtre e do Le Centquatre, em Paris, do suíço Schauspielhaus Zürich e do italiano Piccolo Teatro de Milano, entre outros.

A <i>Trilogia do Horror</i> se fecha com <i>Antes Que o Céu Caia</i>, uma fusão da peça Macbeth, de Shakespeare, com o livro <i>A Queda do Céu</i>, de Davi Kopenawa, e <i>Depois do Silêncio,</i> que cruza o romance <i>Torto Arado</i>, de Itamar Vieira Junior, e o filme Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho.

<b>DILEMA</b>

A agenda da diretora está tomada até a metade de 2024 e, entre os projetos, aparece uma versão feminista de Hamlet, de Shakespeare, transformando o personagem-título, masculino no original, em uma princesa assombrada pelo fantasma do pai. "É como se depois de séculos esse corpo feminino pudesse abandonar o dilema do ser ou não ser e partir para a ação", antecipa. Para o segundo semestre, Jatahy promete uma produção montada no Brasil.

"Provavelmente será em cima de uma dramaturgia nacional ", comenta. "A gente precisa dialogar com o que está acontecendo com o espectador, e <i>Trilogia do Horror</i> nasceu porque passei 2020 quase todo no Brasil, chorando e batendo panela."

A Hora do Lobo
Teatro Anchieta do
Sesc Consolação.
R. Dr. Vila Nova, 245.
4ª a sáb., 20h; dom. e fer., 18h.
R$ 50. Até 15/10.

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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