“O container balançava, enquanto a grua o deslocava para o navio. Como se estivesse flutuando sozinho no ar, o sprider, gancho que o prendia à grua, não conseguia domar o movimento. Suas portas, mal fechadas, se abriram bruscamente, e, dezenas de corpos começaram a cair. Pareciam manequins. Mas, no chão, as cabeças rachavam, como se fossem crânios verdadeiros. E eram crânios. Saíam do contêiner homens e mulheres. Também alguns rapazes. Mortos. Congelados, todos juntos, uns sobre os outros. Em fila, apertados como sardinhas em lata”.
Em seguida, o jornalista identifica aqueles corpos:
“Eram os chineses que nunca morrem. Os eternos cujos documentos são passados de um para outro. Eis onde iam parar. Os corpos, que a imaginação mais fantasiosa acreditava cozinhados nos restaurantes, enterrados nas hortas do entorno das fábricas, jogados na boca do Vesúvio. Estavam ali… Caíam às dezenas, com o nome escrito num crachá pendurado num cordão em volta do pescoço”.
Estas poucas linhas do texto de Saviano são suficientes para fazer o leitor mergulhar nos ambientes dos filmes norte-americanos sobre a Máfia. E para levarem-no a imaginar que o jornalista apresentará em seguida a previsível explicação hollywoodiana do transporte daqueles defuntos: desmanche de corpos das vítimas dos bandidos. Isto porque, como nos lembra os versos de Caetano Veloso, ninguém acredita na vida real. Muito mais irreal. Na verdade, esclarece Saviano, os chineses mortos haviam comprado junto aos bandidos o direito de ter seus corpos comprimidos naquele container. Queriam que os mafiosos os transportassem até qualquer lugar da China onde pudessem ser enterrados.
Em resumo: a cena fazia parte de um serviço pago por imigrantes chineses desejosos de retornar ao torrão natal, depois de mortos. Pago com descontos percentuais em seus salários.
Que ficcionista seria capaz de criar tal cena? Saviano teve apenas de descrevê-la porque ela se desenrolou diante de seus olhos, quando colhia dados sobre a Gomorra. Ninguém se iluda, porém. Nem de longe foi fácil para o jornalista produzir aquele texto, embora nele tenha usado sua experiência como pesquisador do “Observatório Sobre a Camorra e a Ilegalidade”. Ao investigar e divulgar a atuação da organização mafiosa, inclusive as relações que a Gomorra mantém com as instituições italianas, Saviano entrou na lista daqueles a serem assassinados por ela. Passou a viver escoltado por cinco policiais, a mudar sempre de endereço, e, a se manter distante de lugares públicos.
Mas sua ousadia foi recompensada. O livro, publicado no Brasil pela Bertrand, foi considerado por Mario Vargas Llosa como uma extraordinária reportagem, “a qual se lê com tanta fascinação quanto espanto e incredulidade”. Vendeu mais de dois milhões de exemplares. E foi transformado num filme, dirigido por Matteo Garrone, que, em 2008, ganhou o grande prêmio do Festival de Cinema de Cannes, na França.
Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP