A vida dos brasileiros que vivem em cima do rio

No Brasil de 2020, após um histórico de programas habitacionais e até "booms" no mercado imobiliário, ainda há casas sem banheiro, palafitas construídas de forma improvisada sobre a água e cômodos abrigando muito mais gente do que a dignidade colocaria como limite. A Fundação João Pinheiro fez neste ano um levantamento preliminar sobre a situação dos domicílios brasileiros e concluiu que um terço deles é inadequado. São 24,5 milhões de habitações impróprias no País, segundo dados de 2019. São deficiências que passam por inadequações de construção e falta de infraestrutura urbana, desembocando em realidades extremas: na região Norte, 1 em cada 10 domicílios não tem banheiro próprio, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Para retratar a realidade das habitações precárias no País, a reportagem do <i><i>Estadão</i></i> percorreu, por 15 meses, cidades de Amazonas, Ceará, Distrito Federal, Goiás, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Foi um caminho afetado pela pandemia – para retratar como esses brasileiros lidaram com a covid-19, os entrevistados foram acompanhados novamente, desta vez por telefone e WhatsApp.

Essa série de reportagens, que terá mais três capítulos nesta semana, vem em um contexto em que o investimento em moradias populares está diminuindo – o Minha Casa, Minha Vida, último grande esforço nesse sentido, definhou. Neste ano, o orçamento do setor foi de R$ 2,8 bilhões, menor valor em uma década e muito longe do pico de mais de R$ 20 bilhões atingido em 2015.

Dessa forma, as famílias que hoje vivem em residências inadequadas terão de contar com o próprio trabalho – e criatividade – para melhorar sua situação. Na região Norte, por exemplo, o <i>Estadão</i> se deparou com a realidade dos brasileiros que vivem, literalmente, em cima dos rios. Eles foram bastante afetados pela chegada feroz da pandemia à Amazônia.

A vida da ribeirinha Kelly Ferreira, de São João do Tupé, comunidade às margens do Rio Negro, no Amazonas, havia acabado de se transformar quando a covid-19 chegou ao local. Oito meses antes da pandemia, mostrara com orgulho à reportagem a casa de dois andares que estava construindo com o marido em Tupé, uma das praias próximas de Manaus, com acesso somente fluvial, mas muito frequentada nos fins de semana.

A construção de madeira estava sendo feita aos poucos pelo marido com o dinheiro da vendinha ao lado da casa e da pesca fora dos meses do defeso. Líder comunitária da associação de moradores, Kelly se caracterizava pelo discurso direto, pela vontade de fazer as coisas acontecerem em Tupé e pelo desejo de fazer faculdade de Pedagogia.

Um mês antes de a covid-19 se alastrar pelo Brasil, tudo mudou para a família. Vítima de um atropelamento numa das vias mais movimentadas de Manaus, onde trabalhava como gari da prefeitura, Kelly ficou 30 dias no hospital, sendo 15 na UTI. A volta para casa depois do acidente coincidiu com o início da pandemia.

Em maio, quando a reportagem a procurou para saber como a família estava enfrentando os efeitos do coronavírus, Raimundo, o marido, foi o porta-voz. A mulher estava na cadeira de rodas, com dificuldade para falar e perda parcial de memória. O casal, que estava brigado antes do atropelamento, se juntou novamente para enfrentar as dificuldades do acidente e da paralisação do turismo em Tupé.

Beneficiário do seguro-defeso, Raimundo não pôde receber o auxílio emergencial de R$ 600 do governo. E Kelly, desempregada da empresa terceirizada de limpeza urbana, não passou no cruzamento de dados defasados do governo para a concessão do benefício. Na mesma época, o atropelador, que deu assistência após o acidente, avisou que não teria mais condições de ajudar. A comunidade entrou em campo: a colônia de pescadores conseguiu consultas médicas pela metade do preço.

Sem dinheiro e com a comunidade isolada pela pandemia, a família parou a obra da nova residência. Cozinha, quartos e o banheiro ficaram incompletos. "Vamos acabar a casa, se Deus quiser, quando passar esse negócio aí", diz Raimundo.

Dois meses depois do primeiro contato durante a pandemia, a reportagem voltou a procurar Kelly, que já estava falando melhor e andando de muleta. O auxílio emergencial acabou sendo liberado para ela, que garantiu que o projeto de terminar a casa e o sonho de fazer uma faculdade foram adiados, mas não morreram.

<b>Riquinho</b>

Quem prospera, porém, nem sempre quer permanecer na beira do Rio. É o caso do mecânico Eliazb Lopes Dantas, o Lio, 43 anos, do bairro de Educandos, em Manaus. Dono de uma balsa-oficina, Lio é chamado pelos vizinhos de "riquinho". Além da oficina e da casa de três andares, tem dois carros, uma residência no interior e outra alugada no mesmo bairro. Vive com a mulher, Elizandra, e as filhas Thais, de 19 anos, estudante de História na Universidade Federal do Amazonas, e Thalia, de 9.

Na comunidade que se desenvolveu num igarapé, as casas são coladas umas nas outras ao longo de um barranco. As primeiras, localizadas à margem e dentro do Negro, são palafitas. À medida que se afastam da água, ficam maiores – e de alvenaria.

Bairro antigo, Educandos sofreu, em dezembro de 2018, um incêndio que atingiu 600 casas e deixou marcas. O fogo começou em uma área com dezenas de habitações de madeira e rapidamente se propagou para as residências de alvenaria. "O fogo chegou a cinco metros daqui. Foi um dos momentos mais tristes da minha vida", lembra Lio, no terraço no alto da sua casa.

Lio admite ser privilegiado. "Conforto é ter uma cama boa, ar condicionado gelando e uma televisão para assistir a um canal fechado. Não preciso mais de nada", diz ele. O mecânico de motor de popa diz ter tido sorte com a profissão, que rentável na região. Um conserto mais simples de motor, onde os barcos são o principal meio de transporte, não sai por menos de R$ 500. Serviços mais caros podem custar R$ 5 mil.

O mecânico diz gostar de onde mora, mas comprou um terreno em um condomínio fechado a 6 quilômetros de Educandos, onde planeja uma nova casa. A mulher quer ir embora do bairro à beira do rio em razão da violência. "Aqui na rua a gente é o riquinho", diz o mecânico. Na nova residência, que será feita por uma construtora nos próximos dois anos, Lio quer realizar um sonho: ter a própria piscina.

<b>Casa flutuante</b>

Na beira do Rio Negro, no centro de Manaus, Raimundo Silva construiu a sua casa entre os barcos que fazem o transporte diário para as localidades da região. Já são quase dez anos morando na água, na região do porto da capital do Amazonas. O barulho é grande. À noite assusta até o cachorro que acompanha o dono da moradia improvisada com geladeiras velhas.

Amarradas, as sucatas de geladeiras se transformam num flutuante, onde o cearense, de 52 anos, vive e passa os dias à procura de comida e também de companhia. É a sua morada. "Nessa brincadeira, já são mais de nove anos aqui, mas não estou gostando, não. O sofrimento é grande. Agora chegaram vocês para me animar", diz ele à reportagem.

Ele migrou para a região aos 16 anos e afastou-se da família de Jaguaruana, município do Vale do Jaguaribe, no Ceará, mais conhecido como a "terra da rede". Local de dormir na casa da infância, a rede também está presente no flutuante. "O problema da gente é comer. Se tiver comida, a gente deita na rede e espera ela se rasgar. Se não tiver comida, a barriga ronca e, aí, dá trabalho."

A Marinha alertou Raimundo para os riscos de acidentes com outras embarcações, mas ao fim o deixou morando ali. Ele trabalhou em fazendas, consertou ventiladores, fez de tudo um pouco. Hoje, não tem emprego, nem família, nem bico para ganhar um trocado. Seu trabalho é buscar comida.

Raimundo diz ser o inventor da sua moradia. "Essa casa eu fiz porque não tinha onde morar. Para não ficar muito jogado, em cima do papelão, os outros chutando. E, aí, eu inventei. Botei uma geladeira, botei outra e outra", conta.

Desempregado, sonha com a promessa de um amigo, de que ganharia uma canoa com motor. A morada ideal é uma embarcação capaz de entrar mais no Rio Negro, para poder parar e comer um "peixinho até bom". Na despedida, ele pega um instrumento tão improvisado quanto a sua casa e canta para a reportagem o sucesso de Zezé Di Camargo & Luciano.

Na pandemia, Raimundo continua resistindo. Um vizinho que passou de barco por lá enviou à reportagem uma foto recente da casa de geladeiras – agora com um segundo andar. Com a chegada da covid-19, ele e boa parte dos brasileiros se voltaram ainda mais para dentro de suas residências – tentando, de alguma forma, torná-las mais agradáveis. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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