O período era o dos atormentados anos da decretação do Ato Institucional número 5 – aquele que, no final de 1968, tornou a ditadura imposta pelos militares ao país, quatro anos antes, ainda mais impiedosa. Os militares poderiam, agora, apoiados neste instrumento discricionário, decretar o recesso do Congresso Nacional e de qualquer Assembléia Legislativa estadual ou Câmara Municipal, intervir nos Estados e Municípios, exigir subordinação de juízes, negar habeas corpus, cassar mandatos de políticos e suspender seus direitos, confiscar bens, estender a censura à música, ao teatro, ao cinema.
Naquele momento, a TV Record não contava mais com os entusiasmados públicos de seus programas de auditório. O público composto por universitários rebeldes, do “Fino da Bossa”, comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues; e o formado por roqueiros, de outro modo também rebeldes, do “Jovem Guarda”, liderado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia.
Públicos buliçosos, cheios de energia, que lotavam o Teatro Record, na, ainda estreita e inclinada, Avenida Consolação.
Pelas portas dos estúdios da emissora, no bairro do Aeroporto, passavam artistas inquietos – aqueles conscientes da situação política que levara à prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil, em Salvador, semanas antes; artistas em confronto com a ganância de empresários – como os Novos Baianos: Galvão, Pepeu, Paulinho Boca de Cantor, Baby Consuelo; artistas “cafonas” – como Waldik Soriano e Agnaldo Timóteo. Misturados a ele, com um revólver preso num coldre, afivelado por baixo do seu braço direito, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, notabilizado depois como torturador de presos políticos. Era, então, chefe do serviço de segurança de Roberto Carlos.
De sua cadeira no bar, Adoniran Barbosa apreciava aquela movimentação. Na mesa, diante dele, um pequeno copo de bebida. Vê-lo ali, por tanto tempo, provocava preocupação e um pouco de consternação. Por que ele não ia para casa, onde teria mais conforto? O que o atraía e o prendia ali, com seu indefectível chapéu, seu bigodinho, seu paletó sem luxo e sem gravada – o peito sempre bem protegido?
O mesmo espetáculo de introspecção no meio de agitação se repetia em outro lugar de São Paulo. Nos finais de tarde, Adoniran se instalava numa cadeira de balcão de um bar e restaurante popular da Rua Major Quedinho, nas proximidades do prédio do Diário Popular. Sequer buscava a comodidade de uma das cadeiras das mesas do estabelecimento. Parecia querer evitar a impressão de que iria consumir algo mais caro. Os braços apoiados no balcão, o chapéu ao lado, lá ficava Adoniran, absorto, diante de outro pequeno copo. Em que pensava?
Quem transitou por estes dois lugares deve ter-se lembrado deste Adoniran calado, quieto, voltado para dentro de si mesmo, em pleno ambiente público – um Adoniran ausente dos textos comemorativos de seu nascimento, divulgados há poucos dias.
Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP