As duas primeiras reuniões da comissão de juristas designada pela Câmara dos Deputados para discutir a atualização da lei de lavagem de dinheiro deixaram surpresas as autoridades de órgãos de controle que acompanham a discussão. Alguns advogados têm defendido mudanças que representam, para procuradores, retrocessos em um campo em que o País tem evoluído nos últimos anos e que contrariam convenções internacionais das quais o Brasil é signatário. Além disso, as mudanças podem levar à anulação de condenações.
O grupo de juristas foi formado em setembro, a pedido do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para formular um relatório com propostas de mudanças para a lei de lavagem. Esse relatório deve resultar em um novo projeto de lei legislativo, alterando as regras atuais.
Há propostas para que a lavagem de dinheiro deixe de ser um crime autônomo e só possa ser punida se houver condenação por um crime antecedente. A ideia é encampada por Gamil Föppel, advogado do ex-ministro Geddel Vieira Lima, condenado por lavagem de dinheiro. Outra sugestão lançada foi a de descriminalizar a ocultação de bens e valores.
Essa medida tornaria impune, por exemplo, o depósito fracionado e constante de pequenas quantidades de dinheiro, prática habitual entre adeptos do crime de colarinho branco e de "rachadinha", mas também poderia levar à anulação da condenação do próprio Geddel, sentenciado pelo Supremo por ocultar R$ 51 milhões em um apartamento em Salvador. Assim, ficaria como crime apenas a lavagem na modalidade dissimulação de valores – para dar um exemplo, isso ocorre quando um pagamento é feito por um serviço não prestado.
Em outra frente, o advogado Antonio Pitombo, que atuou no mensalão e também já defendeu Jair Bolsonaro enquanto deputado federal, propõe a diminuição da pena máxima de lavagem de dinheiro 10 para 6 anos. Outra sugestão, do advogado Juliano Brêda, que defendeu empreiteiros da OAS na Operação Lava Jato, é para que a pena máxima pelo crime de lavagem de dinheiro não seja superior à do crime antecedente.
Advogados que integram a comissão também querem prever expressamente que o recebimento de honorários advocatícios não configura lavagem de dinheiro sob qualquer hipótese; o argumento é que os advogados estão sendo punidos pelo simples recebimento de seus honorários.
Essa medida blindaria advogados que estão na mira da Lava Jato no Rio de Janeiro, diante de suspeitas de que houve contratos fictícios para lavagem de dinheiro.
A comissão de juristas, formada por 44 integrantes, tem 24 advogados, e as autoridades ligadas a órgãos de controle são minoria. Não há representantes, por exemplo, do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), órgão reconhecido como fundamental para o avanço de algumas das mais importantes investigações do país envolvendo lavagem de dinheiro, nem da Receita Federal.
<b>Para procuradores, propostas configuram retrocesso no combate à lavagem de dinheiro</b>
O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Fabio George Cruz da Nóbrega, aponta que essas propostas da comissão de juristas citadas pela reportagem são prejudiciais à prevenção e à lavagem de dinheiro no país. "Seria um retrocesso enorme nessa longa caminhada que o Brasil trilhou para adequar a legislação aos parâmetros internacionais", disse.
A Lei de Lavagem foi aprovada no Brasil em 1998, prevendo, entre outros pontos, a criação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), e sofreu uma importante alteração em 2012, quando ficou estabelecido que qualquer delito que gere bens, direitos ou valores agora poderá resultar em lavagem de dinheiro. Isso permitiu avançar no rastreamento e confisco de dinheiro do financiamento de organizações criminosas.
"A Lei de Lavagem de Dinheiro adequou a nossa legislação à dos países mais desenvolvidos. O Brasil foi cobrado por muito tempo para fazer isso. A lei atual de lavagem é uma conquista porque igualou o Brasil no nível das legislações mundiais de lavagem de dinheiro e fez que o país, a partir disso, passasse a ser respeitado por organismos internacionais", disse Fábio George Cruz da Nóbrega.
O Brasil tem sofrido pressão da comunidade internacional por retrocessos na área da prevenção e lavagem de dinheiro. No ano passado, um grupo de trabalho da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) criticou liminares concedidas pelo Supremo Tribunal Federal que levaram a "limitações à utilização de relatórios da Unidade de Inteligência Financeira (nome como o Coaf passou a ser chamado por um curto período em 2019), da Receita Federal e de outros órgãos administrativos em investigações criminais" e externou preocupação com possível prejuízo "à capacidade do Brasil em detectar e combater de maneira eficaz a corrupção".
No ano passado, o <b>Estadão</b> mostrou que a liminar do então presidente do Supremo, Dias Toffoli, que limitou o compartilhamento de dados do Coaf poderia dificultar até a entrada do Brasil na OCDE, o chamado "clube dos países ricos". A decisão foi tomada por Toffoli em atendimento a um pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, mas foi revertida no fim de 2019 pelo plenário do Supremo.
Agora, integrantes do Ministério Público que acompanham as discussões sobre a reforma da Lei de Lavagem no Brasil apontam preocupação com as possíveis mudanças e temem que o Brasil sofra algum tipo de reprimenda do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF), vinculado à OCDE.
<b>Coaf na mira</b>
Uma das preocupações de quem acompanha a comissão de reforma da Lei de Lavagem é que, agora, a Câmara decida modificar as competências do Coaf ou a forma de trabalho, de um modo que torne menos efetivo o órgão. Desde o mensalão, até hoje, passando pela Operação Lava Jato, o Coaf assumiu um papel de enorme relevância na investigação sobre crimes de colarinho branco, como corrupção e lavagem.
Desde o início do governo Jair Bolsonaro, o momento político é de pressão sobre os órgãos que fazem a investigação desse tipo de crimes. Em parte, pela reação natural da classe política após os estragos nas reputações dos denunciados pela Operação Lava Jato. A prática tem contrariado o discurso do presidente de que trabalharia pelo fortalecimento dos órgãos de investigação. O Coaf chegou a ser transferido do Ministério da Economia para o Ministério da Justiça e Segurança Pública, por proposta do então ministro da Justiça, Sergio Moro, como forma de aproximação com os órgãos de controle. Porém, parlamentares do chamado Centrão manobraram no Congresso para desfazer essa mudança, com anuência do presidente Jair Bolsonaro, que no fim colocou o Coaf dentro da estrutura do Banco Central.
A comissão de juristas é presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Reynaldo Soares da Fonseca e tem como relator o desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Questionado pela reportagem sobre as propostas, Ney Bello disse que ainda é cedo para saber quais irão entrar no relatório e que não pode adiantar juízo de valor.
"O objetivo da comissão é atualizar a lei diante de movimentos mundiais de combate à lavagem de dinheiro, como também modificar a lei em razão de interpretações da jurisprudência pacífica", disse Ney Bello ao <b>Estadão</b>.
<b>Lei de Improbidade Administrativa</b>
Enquanto advogados propõem aliviar a Lei de Lavagem, outra lei fundamental para o combate a corrupção no país caminha para ser flexibilizada: a Lei de Improbidade Administrativa. No caso, após uma comissão de juristas propor alterações na legislação, o relator do projeto na Câmara, Carlos Zarattini (PT-SP), alterou ainda mais o texto em um substitutivo que é descrito pelo Ministério Público com um grande retrocesso. A alteração tem apoio do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-SP).
A proposta, que já teve aval do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para ser votada em plenário, restringe as sanções apenas a casos em que houver comprovadamente enriquecimento ilícito ou dano aos cofres públicos. Práticas como nepotismo, tortura e "furada de fila" em serviços públicos, por exemplo, não resultariam mais em sanção por improbidade. A medida ainda prevê limitar as situações em que um juiz pode determinar o bloqueio de bens dos acusados e encurta prazos de prescrições.
O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) demonstra preocupação também quanto ao abrandamento da Lei de Improbidade. "Não podemos ter retrocessos no Legislativo em dois temas importantíssimos: a lavagem de dinheiro e a improbidade administrativa".
Propostas que integrantes do MP apontam como prejudiciais:
1) Lavagem deixar de ser crime autônomo e depender de condenação por crime antecedente.
2) Impedir que a pena de lavagem seja maior que a do crime antecedente.
3) Diminuição da pena máxima de 10 para 6 anos.
4) Descriminalização da lavagem de dinheiro na modalidade "ocultação".
5) Previsão de que o recebimento de honorários advocatícios não configura lavagem de dinheiro sob qualquer hipótese.