Sem problemas ao ser definido entre seus conterrâneos franceses tanto como "o diretor" ou "a diretora", assumindo-se não binário, mas avesso a rótulos, Bertrand Mandico passou a ser encarado (sem queixas com verbos ou artigos no masculino) como uma das vozes autorais mais potentes do audiovisual europeu depois que um de seus longas, Os Garotos Selvagens, encabeçou a lista dos melhores filmes de 2017 da Cahiers du Cinéma. A revista, uma das mais respeitadas do mundo cinematográfico, trata Bertrand com deferimento. Desde então, sua obra explicitamente queer e carregada de erotismo em seu debate sobre o desejo virou cult.
Hoje, aos 50 anos, seu nome dispara como favorito ao Leopardo de Ouro do Festival de Locarno, com o longa-metragem After Blue (Paradis Sale). Concorre ainda, no evento suíço, ao prêmio da mostra Pardi di Domani: Concorso Corto dAutore con o curta-metragem Dead Flesh. Tragando uma piteira estilizada e usando um pé de galinha como broche, Mandico conversou com o <b>Estadão</b> sobre o sucesso de sua estética multicolorida, pautada pela fantasia e influenciada pelas Hqs.
"Sou um signatário do manifesto da liberdade, rejeitando todos os rótulos, principalmente os que nos prendem ao binarismo. Durante anos, eu quis ser atriz, mesmo que o meu corpo leve as pessoas a pensar em mim como ator. Acabei encontrando uma forma de atuar dirigindo, expressando meu apreço pela força das mulheres, na figura de atrizes talentosas com quem eu trabalho. Regras morais não podem limitar a imaginação. Nem mesmo as regras dos gêneros cinematográficos, pelos quais tenho apreço. A própria normatização filme de autor virou um gênero", polemiza Mandico, que foi ovacionado nas projeções de After Blue (Paradis Sale) em Locarno. "Padrões existem para serem rompidos."
Revelado como cineasta em 1998, ao lançar o curta Le Cavalier Bleu, Mandico dialoga com as cartilhas das narrativas fantásticas na história do planeta After Blue. É um mundo paralelo que abriga habitantes da Terra num futuro distópico, no qual, segundo suas personagens, "só quem tem ovário sobrevive". Nesse microcosmo de plantas fálicas, onde só há mulheres – à exceção de um cego, cujo órgão sexual virou uma série de tentáculos -, a jovem Roxy (Paula Luna Breitenfelder) e sua mãe, a cabeleireira Zora (Elina Löwensohn), caçam uma espécie de djin (uma criatura mítica que transforma vontades em realidade, como o Gênio da Lâmpada de Aladdin) chamada Kate Bush. O que se vê em cena é um faroeste metafísico misturado com O Senhor dos Anéis, mas com um visual que lembra Duna, de David Lynch.
"A fantasia é um ponto de recuo essencial para um momento em que a realidade transpira ódio. A estranheza nos faz dar um passo atrás, respirar e olhar o que está em nossa volta com a liberdade de quem teve tempo para recuperar o fôlego. É por isso que sigo esse caminho do que é mágico. Mas é um caminho carregado do que li nas páginas do gibi Métal Hurlant (Heavy Metal, no Brasil), quadrinho que nos revelou Moebius, Richard Corben e muitos outros talentos do desenho, pautados pela lisergia", diz Mandico. "As HQs dessa turma, nos anos 1960 e 70, partiam do surrealismo para injetar transgressão no gênero ficção científica. E é como eu busco filmar, investindo no simbolismo."
No curta Dead Flesh, Mandico leva Locarno a uma jornada experimental pela criação do mundo, com seres pré-históricos e menções à cultura LGBT+. "Sou fã de Jean Cocteau pois ele, como multiartista, combateu as castrações da moral e nos deu o caminho para a vanguarda, o caminho que alimentou o estado de espírito queer. Depois vem Kenneth Anger. A fluidez, em tudo, até nos gêneros sexuais, é o que nos leva a transcender", explica Mandico.
Locarno termina no dia 14, com a exibição de Respect, cinebiografia de Aretha Franklin (1942-2018), com Jennifer Hudson e Marlon Wayans, e dirigida por Liesl Tommy. O Brasil está em disputa com os curtas Fantasma Neon, de Leonardo Martinelli, e A Máquina Infernal, de Francis Vogner dos Reis.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>