Depois de passar quase quatro anos no Senado, um projeto de lei que propõe medidas para fortalecer as agências reguladoras federais acaba de completar um ano na Câmara, sem que os deputados tenham nem sequer iniciado a análise da matéria. O único passo dado na Casa até agora foi a indicação dos parlamentares que formarão a Comissão Especial criada para examinar o texto aprovado no Senado. A comissão, no entanto, ainda não foi instalada. A reunião que inauguraria os trabalhos, marcada para 23 de agosto, não aconteceu por falta de quórum. Resultado: a comissão permanece sem prazo para começar a funcionar.
O PL 6621/2016 avança ao propor medidas que aprimoram a governança das agências, especialmente ao definir regras para a nomeação de cargos de direção. A exemplo da Lei das Estatais, aprovada no ano passado, o objetivo é reduzir o espaço para a indicação de diretores sem a qualificação técnica necessária, alçados ao cargo em razão de apadrinhamento político.
A escolha de um diretor de agência é um processo praticamente sigiloso. Um dos assistentes mais próximos do presidente da República, geralmente ligado à articulação política do governo, recolhe nomes de candidatos entre políticos da base aliada, com o objetivo de satisfazer alguém ou alguma legenda. Em seguida, acontece o rito oficial: o chefe do Executivo envia o nome escolhido para sabatina e aprovação (ou não) do Senado.
A chance de o nome enviado pelo presidente ser rejeitado pelo Senado é diretamente proporcional à capacidade de articulação do governo. “Até hoje, apenas três candidatos foram barrados pelos senadores e, em todos os casos, o objetivo foi demonstrar descontentamento com o governo”, afirma Floriano de Azevedo Marques Neto, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. No caso ocorrido em 2012, quando Bernardo Figueiredo foi barrado para a recondução como diretor-geral da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), o senador Romero Jucá, então líder do governo Dilma, declarou: “Foi uma posição política de pessoas não satisfeitas. Tem insatisfação em todos os partidos. É o ministro que não atendeu, é a emenda que não saiu”.
Caso o PL seja aprovado na Câmara, tal qual passou no Senado, o presidente passará a nomear os diretores de agências reguladoras com base em listas tríplices. Os nomes da lista serão escolhidos após uma pré-seleção baseada na análise do currículo dos candidatos que atenderem a um “chamamento público”.
O texto também estabelece que só poderão concorrer a esse tipo de vaga aqueles profissionais que tiverem, pelo menos, dez anos de atuação no setor regulado, ou quatro anos de trabalho em função executiva na área. A proposta ainda proíbe a nomeação de titulares de mandato eletivo, em qualquer esfera de poder, ou sindical. Os candidatos também não podem ter participação direta ou indireta em qualquer empresa que atue no setor regulado.
Esse conjunto de regras seria capaz de barrar boa parte dos diretores que já passaram pelas dez agências federais e eliminaria muitos dos que ainda lá estão. “Não há uma forma de blindar completamente uma agência contra a indicação de membros inadequados, mas a criação de regras que aumentam a transparência do processo é, sem dúvida, positiva”, afirma Alexandre Aragão, advogado e professor de direito administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “Se a seleção de um diretor for, de fato, amplamente divulgada e aberta a todo cidadão, um candidato que se sinta preterido injustamente pode contestar a seleção, pode ir à imprensa, enfim, quanto mais transparência, mais chance de haver controle social.”
Morosidade, apesar da urgência. A morosidade no trâmite do projeto das agências reguladoras no Congresso contrasta com a importância do tema para o País. Essas agências regulam e fiscalizam setores responsáveis por mais da metade do PIB nacional. Elas também têm impacto direto no dia a dia das pessoas. São responsáveis, por exemplo, por fiscalizar a qualidade das pistas dos aeroportos, pela definição do índice de reajuste dos planos de saúde, das tarifas de energia e uma infinidade de questões que afetam a segurança, o bolso e a qualidade de vida de qualquer cidadão.
Para entender a relevância das agências reguladoras, é preciso conhecer um pouco da origem desses órgãos e do papel que eles desempenham – ou deveriam desempenhar.
A primeira agência reguladora foi criada há mais de cem anos nos Estados Unidos, para disciplinar o funcionamento das ferrovias. Na época, os fazendeiros do meio oeste americano estavam sendo prejudicados pelos preços do transporte ferroviário, um dos setores classificados como monopólio natural.
Nesse tipo de segmento, o custo da infraestrutura é tão elevado, que inviabiliza a existência da competição, ou seja, não dá para construir uma ferrovia ao lado da outra para competir pelos mesmos clientes, pois o preço do frete torna-se inviável para os próprios usuários. O mesmo acontece com outros serviços de utilidade pública, como distribuição de energia, de água, de gás, aeroportos, portos e rodovias.
O problema é que monopólios e oligopólios tendem a negligenciar a qualidade dos serviços e a exorbitar nos preços, como reclamaram os fazendeiros americanos. A saída encontrada nos Estados Unidos para resolver o impasse foi criação de uma agência de Estado para regular e fiscalizar o setor ferroviário.
As autoridades reguladoras nasceram, portanto, com o papel de simular a competição em setores especiais, aqueles em que a concorrência provoca prejuízo, em vez de benefícios à sociedade. A alta qualificação de seu corpo técnico é, portanto, obrigatória. “A função do órgão regulador é como a de uma equipe de profissionais que estuda todas as condições de um carro para que ele tenha o melhor desempenho possível com o menor consumo de combustível”, explica Maria Augusta Feldman, advogada e ex-presidente da Associação Brasileira das Agências Reguladoras.
Essa equipe, segundo Maria Augusta, tem de saber o ponto ideal do motor, a calibragem dos pneus, a hora certa de trocá-los, a vida útil de cada peça, dos fluidos, enfim, tudo para que o motorista tenha o carro funcionando perfeitamente, sem parar no meio da rua, mas também sem gastar dinheiro à toa.
A missão da agência americana, no entanto, não era proteger os fazendeiros, mas garantir que o setor ferroviário continuasse funcionando e se expandindo para beneficiar o conjunto da economia. Para isso, o preço do frete teria de ser suficiente para remunerar as empresas ferroviárias, que deveriam continuar investindo nas estradas de ferro, mas sem que elas exorbitassem nos preços, simplesmente por serem monopolistas em suas rotas.
No Brasil, as agências reguladoras foram criadas apenas na década de 1990, como instrumento para viabilizar a privatização ou a abertura de setores onde reinava o monopólio estatal. As empresas privadas só se aventurariam a entrar em áreas historicamente operadas por estatais se tivessem garantias de que os contratos de concessão, geralmente de longo prazo, seriam respeitados, apesar das mudanças de governos.
A hesitação do setor privado era justificada. Quando os setores de infraestrutura eram totalmente estatais, governos de todos os partidos não tinham pudor de barrar reajustes de tarifas de serviços como o de energia, particularmente em períodos de alta inflacionária. O populismo tarifário foi responsável por provocar sucessivos prejuízos às estatais e, consequentemente, comprometer investimentos em todos os setores de infraestrutura.
Nenhuma empresa privada se arriscaria a entrar em um negócio, correndo o risco de ter o preço de seu produto congelado pelo governo. No Brasil, portanto, as agências reguladoras brasileiras surgiram para garantir que as regras do jogo – o contrato de concessão – fossem respeitadas, independentemente do grupo político que estivesse no poder.
O contexto de criação das agências brasileiras – o período de privatizações na década de 1990 -, provocou uma confusão de conceito, como se esses órgãos tivessem apenas o papel de proteger as concessionárias. Nada mais equivocado, afirmam os especialistas em regulação. “A autoridade reguladora não pode ser cooptada nem pelas empresas, nem pelo governo, nem pelos usuários”, afirma o economista Adriano Pires, um dos estruturadores da Agência Nacional do Petróleo (ANP), criada em 1997.
Atingir o equilíbrio ensinado na teoria da regulação não é algo fácil em lugar nenhum do mundo. As tecnologias, os hábitos das pessoas e as economias mudam o tempo todo. No Brasil, onde as agências têm 20 anos, no máximo, o mundo real ainda está distante do ideal. Mas economias mais desenvolvidas ensinam que o melhor caminho é trabalhar para aprimorá-las. Não o contrário. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.