Incansável, a coreógrafa Deborah Colker já tratou de diversos assuntos em seu trabalho, ao longo de 21 anos. Estabeleceu, por exemplo, uma gramática para o corpo em espetáculos tão distintos como Casa, Nó e Cruel. Também se aproximou das artes plásticas em 4 por 4. Em 2011, decidiu contar uma história, o que não era tradicional na sua dança, em Tatyana, em que apresentou suas sensações a partir da leitura de Eugene Onegin, romance em versos publicado em 1832 por Aleksandr Puchkin.
E foi durante a temporada desse espetáculo que Deborah encontrou inspiração para seu mais recente espetáculo, Belle, que estreia nesta sexta-feira, 29, no Teatro Alfa, depois de uma passagem de sucesso pelo Rio de Janeiro. “Em todos meus trabalhos, o que me move é o amor e suas diversas representações”, conta a coreógrafa, novamente seduzida por outro romance – dessa vez, Belle de Jour, que o escritor franco-argentino Joseph Kessel lançou em 1928. “Na verdade, meu ponto de partida foi a famosa versão cinematográfica que Luis Buñuel filmou em 1967, com Catherine Deneuve. A partir dele, cheguei ao livro.”
Deborah também foi envolvida pela forma como Buñuel utilizou a história para criticar a sociedade burguesa e católica, mas, ao criar sua coreografia, buscou novos caminhos. “Minha intenção foi tratar de desejo, paixão, casamento, enfim, necessidades da condição humana”, explica.
Belle repete a estrutura de Tatyana com uma história com começo, meio e fim ao acompanhar a trajetória de Sévérine, mulher de um profissional bem-sucedido que não consegue se realizar sexualmente no casamento. Decide visitar um bordel. Assim nasce Belle, codinome da personagem.
Dessa forma, o espetáculo se divide em dois atos – no primeiro, é revelada a insatisfação de Sévérine, desde seu cotidiano modorrento até sua chegada ao bordel; no segundo, ambientado inteiramente no prostíbulo (momento em que as bailarinas trocam as sapatilhas por sapatos de salto alto), quando se rende aos desejos.
“Como ela nunca tinha visitado um bordel, sua imaginação começa a trabalhar. Na verdade, toda a história pode se passar na cabeça de Sévérine, ou seja, o bordel pode ser só uma fantasia”, diz Deborah, que, por conta da intensa transformação sofrida pela personagem, decidiu que duas bailarinas interpretariam o papel principal, uma medida inédita em seu trabalho.
“É como se a segunda trouxesse a revelação do desejo contido na primeira”, explica. “A Belle que vive dentro dela é tão forte que merecia um físico diferente, pois em dança tudo se traduz no corpo. E escolhi duas bailarinas totalmente diferentes, para isso ficar evidente. Essa é minha assinatura estética na coreografia: personificar esse duplo.”
De fato, além da mudança de corpo, o segundo ato traz a sensualidade à flor da pele, um terreno perigoso que fez Deborah percorrer a tênue linha que separa o erótico do pornográfico. “Como se trata de um espetáculo plástico, meu olhar se materializa pelo erótico, jamais pelo pornô”, comenta ela, que criou uma de suas mais belas cenas de sua carreira e que já vem se tornando clássica: a que utiliza um enorme pano, atrás do qual são representadas as tensões e os calores enfrentados por Sévérine e seu desejo incontrolável. “No pano, acontece o momento das visões, ou seja, quando Sévérine começa a ter contato erótico com o próprio corpo.”
Durante o processo criativo, que consumiu dois anos e meio de trabalho, Deborah evitou rever o clássico filme de Buñuel, ainda que tivesse gravado na memória o tratamento cheio de ambiguidades e elipses dado pelo genial cineasta, detalhes que não existiam na obra original. “Ele fez escolhas que eu não segui e, ao mesmo tempo, optei por trechos do romance original ignorados por Buñuel.”
Curiosamente, o cineasta espanhol não gostava do livro de Kessel, tratando-o como um romance antiquado, justificando sua versão tão recheada de modificações, que surgem na tela sob a forma de devaneios e sonhos da personagem principal. Esse tratamento também norteia Deborah de uma certa forma. “Sévérine se divide entre duas servidões que devem coexistir, carne e espírito, desejo e amor. É uma questão humana.”
Além do duplo, Deborah trabalha também com a convivência entre a tradição e o novo, na dança. Assim, no início de Belle, as bailarinas dançam na ponta dos pés, recurso do qual ela se apropria com prazer. “Quando Isadora Duncan tirou as sapatilhas, no início do século 20, foi uma grande ruptura. Mas a roda continua rodando. Pina Bausch voltou para as pontas e para as histórias. A atitude contemporânea é a ausência da fórmula”, justifica.
A coreógrafa mantém-se fiel à sua equipe criativa, com quem divide o trabalho há anos. É o caso da cenografia de Gringo Cardia, que idealizou móveis tradicionais para o primeiro ato que se transformam em suportes ideias para um bordel no segundo. “Há ainda uma barra que ganha nova utilização na parte final do espetáculo”, explica Deborah.
Assim como o mobiliário, também os figurinos de Samuel Cirnansck sofrem uma transformação à medida que os movimentos se tornam mais intensos, seguindo a evolução do delírio de Sévérine. Assim, no segundo ato, enquanto o bordel é retratado em branco e preto, o figurino ganha tons fortes e um corte mais sensual, além de acessórios inspirados nos anos 1960. Destaque ainda para a trilha sonora, que vagueia entre Miles Davis e Velvet Underground e a música eletrônica criada por Berna Ceppas. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.