Vestido de Amor, novo álbum de Chico César, que chega às plataformas digitais no dia 23, está, propositalmente, impregnado de África. E de maneira natural. Nascido em Catolé do Rocha, no interior da Paraíba, ele sabe que sua música se banha nas mesmas águas onde nasceu o maliano Salif Keita, um de seus convidados.
Aliás, foi Keita que mostrou a Chico que a música feita na periferia de um país poderia chegar ao grande público. Ray Lema, o outro convidado, chamou atenção do brasileiro que a música de Luiz Gonzaga era africana em sua forma.
Gravado na França, a convite do selo Zamora, com produção do franco-belga Jean Lamoot, o álbum tem na banda músicos brasileiros, franceses e africanos.
O forró, o reggae jamaicano, a rumba zairense, o calipso, coco e o rock envolvem letras autorais que falam de amor, sensualidade, encontros, vida pós-pandemia, política e religião – esses dois temas juntos, no reggae Bolsominions, uma crítica direta aos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, de quem Chico evita até pronunciar o nome.
Para falar de Vestido de Amor, Chico recebeu o <b>Estadão</b> em sua casa, em São Paulo, às vésperas de embarcar para uma turnê na Europa.
<b>Na canção que abre o disco, Flor de Figo, você diz que "de novo algo aconteceu comigo". Que reencontro foi esse?
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É uma canção autoanalítica. Digo que estou aberto a amar. E não é amar uma pessoa. E sim à vida, estar vivo. É uma canção da pandemia. E foi ela que me disse que ali estava nascendo um disco. Uma espécie de locomotiva na qual outras canções de organizaram em torno dela. Um momento novo em mim.
<b>Esse disco é pan-africano. Fale sobre essa ideia.
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Sou descendente de africanos, na América do Sul, no Brasil. Sinto que a minha música sempre teve essa condição diaspórica. E, ao longo do tempo, foi se fortalecendo a consciência de que a música nordestina é uma música africana. Quem me alertou para isso, há algum tempo, foi o Ray Lema. Ele me disse: o músico mais africano no Brasil, depois de Luiz Gonzaga, é você. Ray me explicou que a música de Gonzaga é totalmente africana. Asa Branca tem um riff e depois um canto. E isso se repete. Essa característica é totalmente africana. A consciência de saber que o forró, o coco, o xaxado, o baião é música africana me dá a tranquilidade de estar partindo sempre de um mesmo lugar, de uma raiz africana. E tudo de uma maneira muito natural.
<b>Neste novo disco vocês são parceiros na canção Xangô e forró e ai.
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Esse "ai" é algo como "sexta-feira vou sair, encontrar meus amigos e ai". Na França, seria o equivalente ao oh là là. Fiz essa música em uma guitarrinha de lata que trouxe da África do Sul. Ray Lema é bem diferente do que se imagina de um artista africano. Ele é formado em música, é um maestro de orquestra e um pianista de jazz. Nos conhecemos no final dos anos 1990. Ele veio aqui em casa. Não falava português. Eu não falava inglês ou francês. Pegamos a guitarra e ficamos tocando. Nossos encontros são sempre uma alegria renovada. Ele quer me levar à África profunda para nos apresentarmos juntos.
<b>Você é uma espécie de embaixador de Salif Keita no Brasil. Fale sobre ele.
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Quando eu o escutei pela primeira vez, tive a impressão de estar ouvindo algo muito novo. Um homem que nasceu branco onde só nascem negros. Um homem de voz aguda, que nasceu em uma aldeia pequena do Mali e que levou a música desse lugar para o pop, um ambiente urbano. Por isso, na canção, eu o coloco no mesmo nível de Prince. Foi depois que eu ouvi Salif Keita que eu me animei a deixar de cantar sentado, com o violão, e a montar uma banda. Eu, de Catolé do Rocha, na Paraíba, também poderia falar de modo mais potente para as populações que vivem nas cidades.
<b>A canção Sobre-Humano, que fizeram juntos, fala do egoísmo e ganância, dois sentimentos contrários à arte. Como ela surgiu?
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Ela nasceu na pandemia, na cozinha de minha casa, com a guitarra elétrica. Provavelmente quando escutei a fala da Angela Merkel (ex-chanceler da Alemanha) dizer à população alemã que o mundo passava por um momento difícil, que todos deveriam ficar em casa, mas que o governo do país daria apoio às iniciativas da ciência e faria de tudo para evitar a fome. E o Brasil estava indo na direção contrária do que Merkel estava dizendo. Aqui era como se o governo fosse um aliado do vírus. Vi que o coronavírus não era mais sobre poder, era algo que estava acima de nós. Eu imaginava que o vírus nos igualaria. Foi uma ilusão. A primeira pessoa a ser contaminada aqui pelo coronavírus foi uma branca, vinda da Europa, que contaminou uma pessoa negra que precisou ir trabalhar para essa pessoa branca. A primeira pessoa a morrer no Brasil foi uma negra. A pandemia acirrou problemas sociais que existem desde a invenção do Brasil para grupos como moradores de rua, indígenas, mulheres, população LGBT. Para essas pessoas, a vida sempre foi uma pandemia.
<b>E aí chegamos na canção Bolsominions, na qual você diz que "a humanidade não quer ser salva".
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Essa canção às vezes é mal compreendida. Ela não é contra os evangélicos, mas sim contra as pessoas que se apropriaram da fé cristã. É como se uma parte das igrejas evangélicas tivesse se tornado escudo humano para milicianos neofascistas. Muitos pastores evangélicos me escrevem para agradecer e dizer que não são cúmplices desses vendilhões do templo, do culto ao bezerro de ouro, do Deus das armas. Isso não faz parte da fé cristã. A segunda camada dessa canção é esse verso. Eu estou falando sobre os bolsominions que não aceitam que há outra grande parcela da população que prega outra fé – ou fé nenhuma – e que não quer ser salva por eles. Essas pessoas querem o paraíso aqui, agora. E não depois.
<b>E, falando em religião, você teme a ira de quem a essa canção se destina?
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Não temo. Tudo que eles querem é que a gente tenha medo. Eles não aceitam propostas mais aguerridas, agressivas. Eles dizem: "eles ainda estão dizendo algo? Deviam ficar dançando ciranda no Largo da Batata". Quando eu canto Pedrada e digo "fogo nos fascistas" não é uma ciranda pacifista. Recentemente, foi um pastor e uma pastora no meu show e pediram para tirar foto no camarim. Ele me disse: "parabéns pelo show, só não concordo com a parte política". Eu falei a ele que fascismo não é política. Não é algo para concordar ou discordar. Os setores autoritários tem que entender que os libertários têm direito à desobediência cível para que a sociedade se torne mais justa.
<b>Não faz muito tempo uma seguidora pediu que você evitasse músicas de cunho político.
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Foi um homem! Uma mulher dificilmente me pediria isso. Fiz um show recentemente em um sindicato de Aracaju e as mulheres foram ao camarim enlouquecidas, agradecidas. Havia um homem, de esquerda, e me disse que faltou (a música) Rei dos Agronegócios. Para os homens sempre falta alguma coisa.
<b>Guilherme Arantes disse que não há mais delírio na música brasileira. Qual sua visão sobre essa questão?
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A própria fala do Guilherme é uma prova de que há delírio na música brasileira. E viva o delírio! Se você escutar a Ava Rocha, Negro Leo, Tim Bernardes. Não há nada mais delirante.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>