A travesti Valeryah Rodriguez, de 35 anos, decidiu voltar para a sala de aula após 22 anos fora da escola. Desempregada e com o Ensino Fundamental incompleto, já duvidava que conseguiria terminar os estudos algum dia. “Por que vim parar neste lugar?”, questionou-se, durante a matrícula. Ela é uma das participantes do programa Transcidadania, criado neste ano pela Prefeitura de São Paulo que dá bolsas de R$ 840 para travestis e transexuais voltarem a estudar.
Das 100 participantes da primeira edição do programa, só 10% deixaram o curso, número abaixo da média de evasão escolar de jovens e adultos no País (os chamados EJA), que é de 36%, segundo o IBGE. A adesão já faz a Secretaria de Direitos Humanos, responsável por sua gestão, pensar em expandir o projeto para 150 vagas no próximo semestre. Para as atividades de 2014 e 2015, o programa custou R$ 3 milhões, valor que envolve o pagamento das bolsas e da equipe de profissionais do Transcidadania.
“Era uma dificuldade tremenda quando pensava em voltar para a escola”, contou Valeryah, que disse viver de “bicos” em salões de beleza. Abandonou os estudos aos 13 anos pelo preconceito dos colegas. Antes, “Quando decidi me assumir como travesti, mudar as roupas e o cabelo, houve toda uma repercussão negativa. Arrumavam muita confusão comigo, não tinha clima para ir”. Á época, estava na 5ª série do Ensino Fundamental (hoje chamado de 6º ano).
Ao deixar a escola, foram inúmeras as tentativas de obter o diploma por meio de cursos. Fez dois supletivos à distância, mas se sentiu enganada ao saber que estes não garantiriam a ela o certificado de conclusão do Ensino Médio. “Caí em conto do vigário e não consegui o diploma. Fiz esses cursos supletivos à distância, paguei R$ 925 em um e R$ 1500 no outro para, no final, descobrir que eles não serviram para nada”.
Como ela, 61% participantes entraram no programa sem ter finalizado o Ensino Fundamental. O objetivo é que, até o fim de 2016, todas saiam com esta etapa de ensino finalizada. A Secretaria Municipal de Direitos Humanos, estuda ampliar o programa com a inclusão do Ensino Médio, que é de competência da rede estadual.
Após fazer reclassificação na unidade em que está estudando, o Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja), na zona sul, a estudante agora está no 9º ano do Ensino Fundamental. Disse que estudou em casa e isto ajudou a “avançar” algumas etapas. O próximo passo é estudar para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que é obrigatório para todas as participantes do Transcidadania. Quer prestar Serviço Social. “Estou até fazendo aulas de reforço”.
Um dos principais fatores que a levou de volta à sala de aula foi o oferecimento da bolsa. “Como ficamos quase o dia inteiro fazendo atividades, o dinheiro ajuda nos transportes e na alimentação”, conta. Mas antes do programa, Valeriah vivia de bicos como cabeleireira. Não conseguia ter trabalho registrado em carteira profissional pelo preconceito. “Com 14 anos tive meu primeiro emprego num depósito de materiais de construção. Ninguém sabe o que eu passei. Tenho problemas na coluna até hoje por isso”, contou.
A rejeição da família dificultou. Quando revelou sua identidade, ganhou o ódio de sete irmãos e do pai. Só a mãe ficou ao lado da filha, conta. “Diziam que eu ia morrer de Aids, podre, fedendo na cama. Ou levando tiro na rua”. disse. Hoje, mora em um quarto no centro da cidade.
Todas as participantes do Transcidadania disseram ter sido expulsas de casa, segundo levantamento da secretaria. Quase metade (43,07%) vive em albergues ou na rua. Há ainda 6,15% que moram em prédios invadidos pela cidade. O recurso financeiro oferecido pelo programa corresponde a 100% da renda das alunas. Das participantes, 63% são pretas e pardas, a maioria com idade entre 31 e 40 anos.
Emprego
Arrumar um emprego é a expectativa de 54% participantes. Redução da discriminação (23%) e formação continuada (23%) são outras prioridades.
A transexual Raira Santos, de 24 anos, que também aderiu ao programa, logo conseguiu trabalho na própria secretaria. Ao notarem que era articulada e já tinha o Ensino Médio completo, conseguiu vaga como secretária no Centro de Cidadania LGBT, na região central. “Eu já trabalhava com telemarketing antes, acho que isso ajudou”, contou.
Como Valeryah, Raira teve dificuldades em concluir a escola no tempo correto. “Ficavam mexendo comigo, fazendo brincadeiras de mal gosto, me atrapalhando”. Após repetir a oitava série do Ensino Fundamental, saiu de Ipatinga, no interior de Minas Gerais e veio a São Paulo em busca de aceitação. Enfrentou problemas novamente e repetiu outra vez. Só foi terminar os estudos aos 19.
Agora, faz cursos oferecidos pelo Transcidadania e quer entrar em uma faculdade de Administração. “Gosto de mexer com planilhas, de atender pessoas, de resolver problemas”, conta. Como já trabalha, deixou de receber a bolsa. Hoje mora em uma ocupação no Centro. Saiu de casa para evitar o preconceito da família adotiva. “Se eu me transformasse em casa, não aceitariam”.
Bolsa
Para o coordenador de Políticas LGBT de São Paulo, Alessandro Melchior, o oferecimento da bolsa foi baseado em pesquisas que mostravam que a maioria das transexuais e travestis não voltavam a estudar por falta de dinheiro. “A única fonte de renda era a prostituição. Quando você estabelece uma fonte mínima de renda, mesmo que temporária, dá condições para que essas pessoas comecem a desenvolver uma trajetória”, explicou.
Além do dinheiro, as alunas são atendidas por uma equipe de 10 profissionais, envolvendo advogados, psicológicos e assistentes sociais. Para receber o dinheiro, explica Melchior, todas precisam obrigatoriamente realizar 30 horas de atividades semanais. Além das 2h30 em sala de aula, todas têm aulas optativas, um curso de Direitos Humanos e Cidadania, além de outras atividades. Fazer o Enem também é obrigatório.
Evasão
Das 100 participantes do Transcidadania, houve algumas desistências e desligamentos. Nove delas saíram do programa por problemas relacionados à dependência de drogas ou problemas pessoais. Três foram presas por tráfico.
“Há determinados circuitos que têm muito mais facilidade de criar relação com a criminalidade, e a prostituição é um deles”, explicou. Para Melchior, a maior dificuldade do Transcidadania é lidar com a questão da saúde das participantes. “A saúde mental é um desafio. Uma das dificuldades foi exatamente o acompanhamento das usuárias de drogas mais pesadas”, disse. Parte das estudantes eram usuárias de crack.