Um dia depois dos últimos militares americanos deixarem o Afeganistão, o Taleban, de volta ao comando do país desde o dia 15 de agosto, defendeu o estabelecimento de laços amistosos com os EUA, diante dos desafios de governar um país que nas últimas semanas perdeu várias fontes de recursos internacionais. "O Emirado Islâmico do Afeganistão quer uma relação boa e diplomática com os americanos", afirmou o principal porta-voz do Taleban, Zabihullah Mujahid, em uma entrevista coletiva na pista do Aeroporto Internacional Hamid Karzai, agora sob controle da milícia.
O local foi escolhido para marcar o que o grupo chama de "vitória sobre as forças internacionais" que derrubaram seu primeiro governo, há 20 anos. "Nós deixamos claro a todos os invasores que quem olhar para o Afeganistão com maldade nos olhos sofrerá o mesmo destino que os americanos enfrentaram", declarou Mujahid, ao lado de milicianos com as bandeiras brancas do Taleban. "Jamais nos rendemos diante de pressão ou da força, e nossa nação sempre buscou a liberdade."
A presença militar americana no Afeganistão, iniciada logo depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, terminou oficialmente pouco antes da meia-noite de segunda-feira, 30, no horário local, com a decolagem do último avião militar do aeroporto de Cabul.
Segundo as autoridades dos EUA, mais de 123 mil pessoas foram retiradas do Afeganistão nas últimas semanas, incluindo cidadãos americanos e afegãos que trabalharam para as forças estrangeiras nas últimas duas décadas. Mas o processo foi marcado pelo caos nos arredores do aeroporto, com milhares de pessoas tentando escapar do Taleban, e por um violento atentado que deixou cerca de 180 mortos, reivindicado pelo Estado Islâmico da Província de Khorasan (Isis-K).
<b>Sem dinheiro vivo</b>
Apesar do discurso de vitória das lideranças taleban no aeroporto, o grupo sabe que agora começa talvez a mais difícil parte da ofensiva que, em questão de semanas, o levou novamente ao comando do país. A começar pela formação de um governo, algo que deve ocorrer nos próximos dias, segundo Muhajid, além da definição sobre o futuro do aeroporto de Cabul, de medidas para retomar a economia e do estabelecimento de segurança em todo o território.
Neste primeiro dia sem forças estrangeiras em solo afegão, Cabul dava sinais de retorno à normalidade. Lojas e restaurantes estavam abertos e com clientes, assim como mercados de rua. Os tradicionais congestionamentos voltaram a ser vistos em ruas e avenidas da capital de 6 milhões de habitantes, sob os olhares de combatentes taleban armados e usando trajes militares deixados para trás pelos americanos.
Contudo, alguns aspectos do cotidiano ainda parecem distantes de qualquer retomada. Mesmo com a reabertura dos bancos, muitos não conseguem obter dinheiro em espécie para comprar itens básicos, como medicamentos e comida, cujos preços dispararam quase 50% nos últimos dias.
Outro tema que preocupa os afegãos é uma possível perseguição a todos que trabalharam para o antigo governo ou para as forças estrangeiras. São comuns os relatos de pessoas procuradas em suas casas e de execuções sumárias, em especial nas regiões fora da capital.
As denúncias contradizem o discurso de moderação adotado pelo Taleban desde sua volta ao poder, que inclui uma sociedade "integrada" e a permissão para que mulheres possam trabalhar fora e estudar, algo vetado durante o primeiro regime do grupo, entre 1996 e 2001. Por enquanto, a maior parte das nações, incluindo os EUA, preferem esperar e julgar o Taleban pelos seus atos futuros.
Por trás da retórica moderada, há um objetivo claro: obter reconhecimento internacional e ajudar a liberar linhas internacionais de crédito – uma delas, do Fundo Monetário Internacional, previa o envio de US$ 500 milhões pouco antes de ser cortada, na semana passada. Os EUA também bloquearam o acesso às reservas do Banco Central afegão no exterior, estimadas em US$ 9,4 bilhões,
Nesta terça-feira, a China, um dos países que mantêm um canal de diálogo com o Taleban, pediu coordenação global para ajudar o país. "A China espera que a comunidade internacional aumente a cooperação e forneça ao Afeganistão a assistência econômica e humanitária necessária", disse o porta-voz da Chancelaria chinesa, Wang Wenbin.
Sem mencionar o Taleban, o secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou sobre uma possível "catástrofe humanitária" no país, e defendeu novas linhas de financiamento para ações de apoio à população local. Em comunicado, Guterres mencionou a "ameaça de um colapso total dos serviços básicos", e pediu que os países da ONU apoiem mecanismos de financiamento com urgência.
O secretário-geral da ONU defendeu ainda que "todas as partes" facilitem o acesso de ajuda humanitária, recordando que um em cada três afegãos "não sabe de onde virá sua próxima refeição", e que precisam da solidariedade da comunidade internacional.
<b>Futuro do aeroporto</b>
Uma pauta central para o Taleban também é o futuro do aeroporto de Cabul, epicentro do caótico e violento processo de retirada de estrangeiros do Afeganistão. A milícia já controla todo o complexo, e o apresenta como o símbolo da vitória militar sobre os americanos.
Ao mesmo tempo, o grupo reconhece que não tem condições de operar sozinho a instalação, e busca parceiros para ajudar na tarefa. O Taleban está em conversas intensas com o Qatar e a Turquia, mas a exigência do grupo de controlar por conta própria, sem forças estrangeiras, todo o aparato de segurança do aeroporto vem travando o diálogo.
"O que estamos tentando explicar para eles é que a segurança aeroportuária exige mais do que apenas proteger o perímetro do aeroporto", declarou à <i>al-Jazeera</i> o chanceler do Qatar, Mohammed bin Abdulrahman al-Thani.
O Taleban também é pressionado para manter a base aérea aberta para permitir a saída de cidadãos estrangeiros e afegãos que possuem visto para outros países. Nesta terça-feira, a Alemanha afirmou que vai esperar a formação de um novo governo para verificar se essa premissa será cumprida plenamente. (Com agências internacionais).