Mundo das Palavras

“Diferenciada”

Como as palavras compõem um código de comunicação entre as pessoas, não teriam utilidade se não existisse o convívio próprio das sociedades humanas. Por isto, não surpreende que o simples uso inesperado de uma palavra possa se tornar um acontecimento social, cujo significado pode ser compreendido, com bastante perspicácia, por muitas pessoas. Pois, elas próprias já terão, com certeza, usado-a também.


 


Este fenômeno ocorreu, há poucos dias, no Brasil, provocado pela forma como a palavra “diferenciada” foi empregada por uma moradora do bairro de Higienópolis, na capital de São Paulo. Criou-se uma oportunidade valiosa para a observação da tremenda força das palavras.


 


“Diferenciada”, comumente, serve para elevar alguém acima do nível médio.  Para dotar uma pessoa de uma qualidade especialmente apreciada. No entanto, seu uso pela moradora do bairro ocorreu num contexto social que ensejou a criação de uma frase, na qual adquiriu um sentido completamente inesperado e até chocante.


 


O contexto social foi o do impacto causado pela recusa, por parte da Associação de Moradores do bairro de Higienópolis, de uma regalia sonhada por milhões de paulistanos. Pessoas submetidas, diariamente, ao sacrifício do deslocamento demorado e complicado numa metrópole. Isto é, o acesso fácil ao melhor transporte coletivo da cidade, o metrô, através de uma estação convenientemente próxima.


 


A moradora do bairro fez uso da palavra “diferenciada” ao tentar explicar para um repórter da Folha de São Paulo aquela recusa. Disse ela: “Eu não uso metrô e não usaria. Isso vai acabar com a tradição do bairro. Você já viu o tipo de gente que fica ao redor das estações do metrô? Drogados, mendigos, uma gente diferenciada”.


 


Foi impressionante o efeito obtido por este uso de “diferenciada”. Provocou uma sensação tão intensa na internet que levou a uma manifestação pública, por parte dos usuários do metrô, de repúdio, nas ruas do bairro. O mesmo uso da palavra, feito, contudo, com debochada ironia da moradora, caiu no gosto dos mais ilustres jornalistas e colaboradores da Folha de São Paulo. E mais: a explicação dela foi literalmente transcrita na seção de frases da Revista Época, de circulação nacional. 


 


Afinal, o que deu tanta força à maneira como a palavra foi empregada? Sem dúvida, a surpreendente utilização de “diferenciada” num contexto de frase, impregnada de preconceito social, na qual ela aparece nivelada a “drogados”, e, “mendigos”, como um prolongamento, ou uma reiteração, num trecho do discurso de desqualificação de quem “fica ao redor” de uma estação de metrô. E quem são tais pessoas, se não os usuários do transporte coletivo? Isto é, milhões de pessoas, a maior parte das quais, sacrificados e honrados trabalhadores que não dispõem do conforto do carro próprio.


 


A manifestação de desprezo desvendou “o tipo de gente”, para usar outra expressão da moradora, que constitui a chamada “elite econômica” do bairro de Higienópolis.


 


Afinal, como lembrava Sartre, “todo juiz é réu”.


 


Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP

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