Eles parecem não saber dimensionar bem o que fizeram. Ou não se importam com isso. Falam, e não soam artificiais, com uma serenidade que não reflete a irresistível sensação de poder libertada pelas grandes criações. Dizem que tudo foi acontecendo meio que naturalmente, sem querer, com ideias em estúdio e em ensaios, sem planta de arquitetos, saindo de uma amizade que o samba consagrou em 2009, quando um participou do show do outro em Miami, nos Estados Unidos. Um história sem maiores surpresas da gravação de um novo disco de samba que soaria totalmente fora dos padrões dos novos discos de samba.
O bandolinista Hamilton de Holanda e o cantor Diogo Nogueira estão juntos com um álbum que poderia inaugurar um gênero. Bossa Negra, título do projeto, tem inspirações mais visíveis na bossa nova, nos afro-sambas de Baden e Vinicius, no jazz e nas canções portuguesas. Soa tudo isso sem deixar que nada disso soe individualmente, sem permitir que o raciocínio ganhe das sensações. Um efeito sobretudo conseguido pelas mãos de Hamilton, ainda que ele prefira dimensionar o que fez com naturalismo. “Juntar as pessoas e tocar, esse já era o conceito.”
Antes do repertório, feito em boa parte por músicas assinadas pelos dois, existe a arregimentação, a base sobre a qual as culturas se perpetuam. E tocar em seus alicerces é sempre um detalhe complicado. Maria Rita lançou há três meses um disco de sambas com guitarras discretas, o que fez gente graúda e alguns críticos torceram o nariz. De Paula Lima, que também fez seu primeiro álbum para o gênero em dezembro do ano passado, a patrulha era sobre seus vocais. Se viessem com o acento soul de quando cantava com o Funk Como Le Gusta, nos anos 90, já entraria no alvo como uma “traidora do movimento”. As rodas de samba do Rio não têm estatuto, mas suas regras são claras. Às segundas, a Pedra do Sal, no Morro da Conceição, não admite instrumentos amplificados nem cantor segurando microfone, tudo para que o samba soe como na origem da roda, em finais do século 19, só no gogó e na palma da mão.
A sustentação de Bossa Negra é, assim, libertária. Diogo canta sobre uma nuvem aparentemente frágil, criada por Thiago da Serrinha e seu kit de percussão batizado na ficha técnica de “percuteria”; por André Vasconcellos e seu contrabaixo acústico, peça rara entre os sambistas; e por Hamilton e seu bandolim de dez, um instrumento que ele mesmo criou ao colocar duas cordas a mais do que têm os bandolins convencionais. Sem paredões de surdos com tantãs nem cortes de pandeiros e tamborins; sem violões de sete nem banjos de partido-alto, eles foram ao limite da abnegação para criar um samba novo, sem temer nem violar as tradições, tirando música também do silêncio.
Seis das 13 canções trazem as assinaturas de Diogo e Hamilton, além de mais parceiros – outro ponto de desnível em comparação com a onda revisionista pela qual passa o samba clássico. E uma das composições, a que tem sido mais celebrada ao lado da primeira faixa, a própria Bossa Negra, trata-se de um achado, um samba inédito feito por João Nogueira, pai de Diogo, e por Paulo Cesar Pinheiro.
Salamandra estava na memória de Paulo. Ele gravou a música em uma fita cassete quando Diogo procurava temas do pai para lançar em seu disco de estreia, em 2001. Mas Salamandra não entrou e Diogo perdeu a fita. Depois de cantar em um show de Hamilton em 2009, nos Estados Unidos, Diogo lembrou da canção e, de novo, foi atrás de Paulo. “Você ainda tem aquele samba, eu perdi a fita?” Ouvir a resposta de Paulo foi um alívio: “Venha que eu gravo de novo pra você”. Sorte sua que o sambista tem memória.
Não deve ser fácil cantar em Bossa Negra. Voz e bandolim ficam lado a lado e a harmonia, muitas vezes, se reduz à linha do baixo ou dilui-se nas cordas de um Hamilton sempre inquieto.
O bandolinista cria contrapontos com a voz ou responde à melodia com improvisos nas pausas. A própria abertura deixa o terreno ainda mais arenoso quando uma convenção rítmica muda a cabeça dos tempos, e tudo parece virar jazz. “Senti, perdi, o samba é meu / Partiu, caiu, ninguém perdeu..” É um trecho que se repete, de harmonia tensa, com sotaque de afro-samba. Diogo diz não se sentir em nenhuma zona de risco por qualquer falta de chão, como disse Gal ao encarar os arranjos minimalistas de Caetano de seu disco Recanto. “A voz não fica só, Hamilton consegue segurar o andamento preenchendo os espaços.” Ainda sobre a “limpeza” acústica, diz: “Não precisamos sempre fazer samba com aquela quantidade toda de instrumentos”. E, nesta pegada, chegam Desde Que o Samba É Samba, de Caetano Veloso; o partido pop O Que É o Amor, de Arlindo Cruz, Maurição e Fred Camacho; e Mineira, outra do pai João com Paulo Cesar Pinheiro. Mundo Melhor, de Pixinguinha, com letra de Vinicius, e Risque, de Ary Barroso, ficam grandiosas no mínimo com o qual poderiam ser feitas.
Hamilton de Holanda, 37 anos, não tem manchas em uma carreira que já atravessou uma década. Filho de pernambucanos, nasceu no Rio, cresceu e estudou em Brasília, e voltou à terra natal há 11 anos. É músico letrado pela Universidade de Brasília e já coleciona prêmios e parcerias com gigantes como os pianistas cubanos Chucho Valdés e Omar Sosa e o trompetista norte-americano Wynton Marsalis, que gravaram com ele no tributo a Pixinguinha, de 2013.
Diogo Nogueira, filho de um obelisco da música brasileira, se lançou na carreira artística depois de tentar ser jogador de futebol. É hoje um dos mais populares nomes da nova safra televisiva de sambistas, com um público crescente, ainda que sem firmar uma trajetória de vida autônoma pelo fato de ter nas veias o sangue de Nogueira. A cobrança sobre suas costas é grande e seu desempenho é sempre comparado com o do pai. Um empresta o prestígio, o outro, popularidade, e Bossa Negra nasce como um disco fenomenal. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.