Documentário flagra o desalento do jornalista e escritor Antonio Callado

Segundo ano da ditadura militar, novembro de 1965. Está marcada uma reunião da OEA (Organização dos Estados Americanos) no Rio. Mas, por estatuto, a OEA só se reúne em países democráticos. O governo de Castello Branco assegura que o Brasil vive uma democracia plena e, portanto, o evento pode ser realizado. O próprio marechal faria o discurso de abertura. Um grupo de intelectuais acha aquilo uma desfaçatez. "Além de darem um golpe, ainda têm o cinismo de se apresentar como democratas", diz um deles. Armam um protesto em frente ao Hotel Glória, para o qual esperam centenas, talvez milhares de manifestantes. Aparecem oito. Os "Oito do Glória" – entre os quais, o jornalista e escritor Antonio Callado (1917-1997), personagem da cinebiografia dirigida por Emília Silveira, e que estreia nesta quinta, 21.

Os "Oito do Glória" naturalmente foram presos naquele arremedo de democracia que se encenava no País. Houve repercussão mundial. E até cinematográfica. No filme de Jean-Luc Godard Masculino, Feminino, o personagem de Jean-Pierre Léaud firma o abaixo-assinado de solidariedade aos brasileiros presos. São as imagens de Léaud que abrem o documentário Callado.

O filme começa com esse ato político de Antonio Callado, e a escolha não poderia ser melhor. Intelectual refinado, jornalista combativo, escritor talentoso e com lugar garantido na literatura brasileira, Callado foi um homem politicamente ativo. Um indignado, como convém a todo brasileiro de bem, diante de uma sociedade de injustiças seculares, escassa tradição democrática e com uma "elite" predatória e extrativista, incapaz de ceder nem sequer um anel para preservar os dedos.

A trajetória de Antonio Callado deu-se pelo jornalismo – naquela época, o jornal era o ganha-pão do candidato a escritor, já que publicar livros nunca deu camisa a ninguém no Brasil (exceto para best-sellers como Jorge Amado e Erico Verissimo). Trabalhou no <i>Correio da Manhã</i>, ao lado de cobras como Otto Maria Carpeaux, Antônio Houaiss, José Lino Grünewald, Carlos Heitor Cony e outros. Esteve em Londres durante a 2.ª Guerra Mundial, no serviço radiofônico da BBC. Foi ao Xingu em busca dos ossos do coronel Percy Fawcett, cobriu as Ligas Camponesas do Nordeste em sua luta pela reforma agrária e esteve no Vietnã durante a guerra contra os Estados Unidos. Era homem de ação, e não escriba de gabinete. Em várias entrevistas, transpostas no filme, diz que o intelectual brasileiro e o jornalista não têm desculpas para ignorar a revoltante condição social do País. Não vivemos numa terra da justiça e da abundância e não podemos nos dar ao luxo de produzir uma obra de punhos de renda e amenidades. Assim pensava ele.

Sua obra literária o confirma. Além do carro-chefe Quarup, influente romance dos anos 1960, deixou uma série de obras de ficção, engajadas e críticas em relação à realidade brasileira, como Bar Don Juan e Reflexos do Baile. A opção não o livrou de polêmicas, mesmo entre a esquerda. Se Quarup fornecia um modelo de compromisso político na pessoa do protagonista, o ex-padre Nando, Bar Don Juan foi visto por alguns setores mais radicais como convite à alienação. Já Reflexos do Baile, em formato epistolar, espelha como nenhuma outra obra a época conturbada do sequestro de embaixadores, forma encontrada pela oposição armada para libertar companheiros presos pela ditadura.

Para traçar esse perfil, a diretora Emília Silveira vale-se de uma série de recursos. Além do material de arquivo (ótimas entrevistas do personagem), usa grafismos e efeitos visuais na tentativa de transpor o material literário para o suporte audiovisual. Um grupo de críticos discute a obra de Callado e sua hipotética permanência. Por sorte, as pessoas desse grupo são inteligentes e bem-humoradas. Não cedem à santificação do personagem, embora visões mais críticas fossem desejáveis, a título de contraponto. O depoimento sincero de Tessy Callado, filha do escritor, enriquece o filme.

A vida que conhecemos de Antonio Callado foi brilhante, mas não isenta de percalços. No plano pessoal, teve de conviver com o suicídio de uma de suas filhas, diagnosticada como esquizofrênica. Depois de carreira muito consistente, não apenas no jornalismo como na literatura, Callado foi perdendo espaço. Salvou-o uma coluna que manteve nos últimos tempos no jornal <i>Folha de S. Paulo</i>.

Também no plano político teve de enfrentar desilusões profundas. Não conseguiu ver realizados seus sonhos de um país melhor e mais justo. Os de sua geração – e também de gerações mais jovens – esperavam que, com o fim da ditadura militar (1964-1985), o Brasil deslanchasse como foguete. Não foi o que aconteceu. Se algumas conquistas foram alcançadas, o País sempre ficou aquém de suas potencialidades.

Isso o amargurava, como deixou registrado em sua última entrevista, concedida aos jornalistas Matinas Suzuki e Maurício Stycer. Nela, Callado manifesta todo o seu desalento em relação ao país pelo qual tanto havia lutado. Morreu uma semana depois, em 28 de janeiro de 1997, dois dias depois de completar 80 anos.

Ah, sim: os Oito do Glória eram nove – além de Callado, Márcio Moreira Alves, Carlos Heitor Cony, Thiago de Mello, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Jayme Rodrigues, Mário Carneiro e Flávio Rangel estavam na porta do hotel para vaiar o marechal Castello Branco.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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