Casos de censura prévia em órgãos públicos, processos administrativos contra servidores que criticam o governo, demissões e transferências de funcionários sem justificativa legal estão mais frequentes, segundo associações do funcionalismo federal. Episódios como estes têm sido classificados como "assédio institucional" por uma coalização de entidades representativas do setor, a Articulação Nacional das Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (Arca).
Nos últimos dois anos, a Arca diz ter contabilizado 684 denúncias de "assédio institucional". Todos os registros são públicos, e muitos deles tiveram cobertura da imprensa. Há cinco meses, a entidade criou uma ferramenta, o "Assediômetro", para compilar todos os casos. O que une todas as situações é o cerceamento à liberdade de expressão – que inclusive contraria as normas das instituições – e a "instauração de um clima organizacional autoritário, desrespeitoso e pautado pelo medo", segundo os organizadores.
"É um assédio que se pratica contra opositores do governo, ou contra políticas e medidas desses órgãos públicos", disse o economista José Celso Cardoso Junior, presidente da Associação dos Servidores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Afipea). "Está matando por dentro essas organizações públicas que foram criadas, ou fortalecidas desde Constituição de 1988, para cumprir esse objetivo de atender a população."
Segundo dados da Arca, denúncias ocorreram em diversos órgãos da administração federal. O mais atingido é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Em seguida estão o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A maioria dos casos registrados ocorreu em 2020. Considerado apenas o ano passado, há uma média de mais de uma denúncia por dia. Os organizadores dizem, porém, que a metodologia não permite dizer a frequência com que os casos ocorreram nesse período. A ferramenta tem sido atualizada por meio da busca de notícias.
No início do mês, a direção do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) disparou um ofício a diretores do órgão informando que a divulgação de estudos e pesquisas deveriam passar, antes, por "conclusão e aprovação definitiva". A divulgação de conteúdo produzido sem autorização prévia pode caracterizar infração disciplinar, sujeita a punição. A medida institui um controle sobre as publicações considerado "pouco usual" pelo corpo técnico, e o documento passou a ser chamado de "ofício da mordaça" por servidores. Quem comete infração vira alvo de um processo administrativo disciplinar e, se o desvio for comprovado, pode sofrer advertência, suspensão ou até demissão.
No dia 10 de março, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, publicou portaria na qual delega a um diretor a responsabilidade de "autorizar previamente a publicação de manuscritos, textos e compilados científicos" produzidos. A autorização agora é pré-requisito para o envio de textos dos pesquisadores para periódicos científicos, revistas especializadas e até anais de eventos comemorativos.
Entidades que representam servidores reagiram às duas medidas, e o caso motivou uma ação da Defensoria Pública da União (DPU) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra as normas, por considerar que elas impedem a livre manifestação de pensamento e têm o objetivo de punir críticos do governo.
Casos como o do ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal, denunciado à Controladoria-Geral da União (CGU) após criticar a atuação do presidente Jair Bolsonaro no combate à pandemia, se encaixam no critério, segundo o presidente da Afipea. Outro exemplo é o envio de ofício pelo Ministério da Educação a universidades, neste mês, no qual alerta que manifestações políticas podem configurar "imoralidade administrativa" e serem alvo de punições disciplinares.
Em setembro passado, cinco professores da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) foram acusados de "insubordinação, descumprimento de deveres funcionais e indisciplina" após discordarem da determinação do diretor da faculdade que tornava as aulas à distância obrigatórias. Eles também foram alvo de representações criminais. Em nota, a administração da universidade disse serem "infundadas as acusações, repercutidas via redes sociais, de perseguição política por parte da Reitoria".
Algumas das situações registradas ocorreram mesmo antes do início do governo Jair Bolsonaro, a partir de outubro de 2018. Há um caso que data de março de 2015. "Antes, esse tipo de coisa era exceção à regra. A novidade é que este governo instituiu o que estamos chamando de assédio institucional como método, como regra", disse Cardoso Junior.
<b>LSN</b>
Servidores e especialistas ouvidos pelo Estadão dizem ver relação com o aumento do uso da Lei de Segurança Nacional (LSN) para investigar críticos do presidente Jair Bolsonaro, e enxergam semelhanças entre as duas situações.
"Tudo isso é fruto da questão política que hoje tem tomado conta de instrumentos legais, de natureza penal e também do tipo administrativo sancionador", diz o professor Cláudio Langroiva, especialista em direito processual penal da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). "Essa manipulação do uso (de leis e normas internas dos órgãos) se revela muito mais como instrumento de perseguição política do que para o cumprimento da lei."
Procurados, CGU e o Palácio do Planalto não se pronunciaram até a publicação desta matéria. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>