2014 é um ano cortazariano. Em fevereiro, os argentinos e fãs de sua literatura em todo o planeta recordaram os 30 anos de sua morte. Nesta terça-feira, 26, ocorrerão as celebrações por seu centenário de nascimento. Na realidade, é um biênio cortazariano, já que as celebrações começaram no ano passado, cinquentenário do lançamento de sua obra mais famosa, O Jogo da Amarelinha, obra revolucionária na época, que permitia uma leitura fora de ordem.
Nos últimos meses, as casas editoriais argentinas atarefaram-se em novas edições de seus livros. Entre as novidades, está o relato biográfico Cortázar em Mendoza, de Jaime Correas, publicada pela editora Alfaguara, que recupera poesias de Cortázar quando se tornou professor universitário. Outro livro é Aulas de Literatura – Berkeley, 1980, da Alfaguara, que reúne as conferências que o escritor deu na universidade americana. Meses depois, o escritor admitiria que havia se divertido em dar as conferências por ter “demolido” a hierarquia professor-aluno.
A mesma editora lançou Cortázar da Letra A à Z, uma espécie de dicionário biográfico ilustrado com material inédito, compilado por sua ex-mulher, Aurora Bernárdez, e Carles Alvarez Garriga. A Biblioteca Nacional de Buenos Aires realiza, entre segunda e quarta-feira, as jornadas “Leituras e Releituras de Julio Cortázar”, com a participação de 40 intelectuais argentinos e estrangeiros. Simultanemente, no Museu do Bicentenário, será realizada uma exposição de fotografias que mostram a vida do escritor.
“Cortázar e o Tango”, no Museu Casa Carlos Gardel, enquanto a TV Pública apresenta Portenha Jazz Band tocando suas melodias jazzísticas preferidas.
Durante as cerimônias para festejar os 100 anos do nascimento do escritor, será lançado o filme Histórias de Cronópios e Famas, feito com computação gráfica e dirigida por Julio Ludueña.
Já o Palais de Glace exibe uma mostra de histórias em quadrinhos sobre Cortázar, a “Rompecortázar”. Motivos para celebrar o autor por intermédio dos comics existem de sobra, já que Cortázar era um fã do gênero.
Em 1973, um jornalista perguntou o que pensava sobre a personagem criada pelo desenhista argentino Quino, a menina-filósofa Mafalda, ícone internacional da irreverência, que havia sido o foco de um ensaio de Umberto Eco anos antes. O escritor olhou surpreso ao repórter e respondeu: “O que é que eu penso da Mafalda? Isso não importa! O importante é o que é que a Mafalda pensa de mim!”
E Cortázar, que já teve especial destaque na Feira do Livro de Buenos Aires no ano passado, também será o foco de homenagens na Feira do Livro de Guadalajara, México, em novembro.
TRECHO
O Jogo da Amarelinha (Ed. Civilização Brasileira, 2007, Tradução de Fernando de Castro Ferro)
“Encontraria a Maga? Tantas vezes, bastara-me chegar, vindo pela rue de Seine, ao arco que dá para o Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio deixava-me entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia no Pont des Arts, por vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada sobre o parapeito de ferro, olhando a água. E, então, era muito natural atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem supresa, convencida, como eu também o estava, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel com linhas para escrever ou aquelas que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta dentifrícia.
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Andávamos por Paris sem nos procurarmos, mas sabendo sempre que andávamos para nos encontrar.
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Nesse tempo, eu a seguia de má vontade, achando você petulante e malcriada, até que, por fim, você se cansou de não estar cansada e entramos num café do boulevard Saint Michel; e, de repente, entre dois croissants, você me contou uma grande parte de sua vida.
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Não estávamos apaixonados, fazíamos amor com um virtuosismo desligado e crítico, mas sempre caíamos, depois, em terríveis silêncios … Mais de uma vez, eu a vi admirar seu corpo no espelho, segurar os seios com as mãos, como nas estatuetas sírias, e passar os olhos pela sua pele numa lenta carícia. Nunca consegui resistir ao desejo de pedir que se aproximasse, sentindo-a curvar-se pouco a pouco sobre mim, desdobrar-se outra vez, depois de ter estado por um momento tão só e tão apaixonada diante da eternidade de seu corpo.”