Ficção e ciência em Devs

Na sua primeira encarnação como artista, Alex Garland foi escritor – ele é autor de A Praia, de 1996, considerado uma das bíblias da geração X e adaptado para o cinema por Danny Boyle em 2000, em filme estrelado por Leonardo DiCaprio. Na segunda, ele passou para os roteiros de cinema: Extermínio (2002) e Sunshine – Alerta Solar (2007), também dirigidos por Boyle, e Não Me Abandone Jamais (2010), de Mark Romanek. Na terceira, tornou-se diretor de cinema, com Ex_Machina: Instinto Artificial (2014) e Aniquilação (2018). Como era de se esperar, sua quarta encarnação é na televisão, que parece ser o destino da maioria dos cineastas hoje em dia.

A minissérie em oito capítulos Devs, sua estreia na TV, entrou no ar na última quinta-feira, 27, no canal Fox Premium 1, com episódios duplos semanais. No aplicativo da Fox, para assinantes, todos estarão disponíveis simultaneamente. "Foi muito libertador ter mais tempo para contar a história", disse Garland em evento da Associação de Críticos de Televisão, realizado em Los Angeles, em janeiro. "E a liberdade que eu tive em termos do que me deixaram fazer, sem ter de ficar discutindo e justificando com quem financia o projeto, foi sem precedentes para mim." Originalmente, a série é da FX on Hulu.

Como na maior parte dos seus trabalhos anteriores, o roteirista e diretor inglês explora aqui a ficção científica, com traços de suspense e terror, com visual elegante. E tudo baseado em conceitos científicos e filosóficos complexos, como mecânica quântica e determinismo, mesclados a uma discussão sociopolítica e econômica sobre o poder das empresas de tecnologia e de seus donos, que muitas vezes criam uma cultura de quase religião.

Gente como Forest (Nick Offerman), dono de uma gigante da tecnologia, a Amaya, com um câmpus modernoso nos arredores de São Francisco. Ele e seu braço direito, Katie (Alison Pill), estão desenvolvendo um projeto secreto chamado Devs. Logo no primeiro episódio, o engenheiro de computação Sergei (Karl Glusman) é recrutado para mudar de área dentro da companhia e entrar no Devs. Ele desaparece, e sua namorada Lily (Sonoya Mizuno), que também trabalha na Amaya, começa a investigar seu sumiço.

A trama de Devs surgiu de questões que inquietavam Alex Garland. "Estou muito, muito preocupado com o futuro", disse ele. "Sou otimista por natureza, acho. Mas acredito estar claro que a tecnologia está avançando num ritmo que não somos capazes de acompanhar."

Ele acrescentou que, no passado, quando isso aconteceu, a sociedade rejeitou os monarcas, substituídos por presidentes e primeiros-ministros, e criou um sistema de separação dos poderes. "Agora algo parecido com a monarquia ressurgiu via tecnologia, mas não há um sistema de controle e equilíbrio desse poder. É perigoso. As redes sociais em particular e a internet em geral têm um poder quase ilimitado. Nas eleições, as informações estão sendo disseminadas de maneira completamente distorcida no Facebook, no Twitter. É aterrorizante e está causando problemas sérios no mundo todo."

Para ele, é preciso haver algum tipo de monitoramento. "E não deveríamos ficar alarmados pela ideia. O Estado tem separação de poderes. A imprensa livre é outro sistema de acompanhamento. A polícia também. Então, estamos muito acostumados a isso. Não deveria causar horror a ideia de instaurar algum tipo de supervisão."

Para Alison Pill, que também está em Picard, Devs é ficção, mas fortemente baseado na ciência. "É uma exploração de mecânica quântica, computação quântica, do determinismo, de questões reais da natureza da realidade do universo", disse Pill. "É mais uma peça sobre conflitos morais, que levanta grandes pontos."
Mesmo discutindo temas como causa e efeito e se existe de fato o livre-arbítrio, Garland disse que não quis simplificar esses assuntos. "Tenho fé de que o público pode se interessar por isso mais do que as pessoas acreditam no mundo de onde vim", afirmou ele, referindo-se ao cinema. Garland soa um pouco amargo, talvez por seu último filme ter ido direto para a Netflix internacionalmente depois de acordo com o estúdio Paramount. "A televisão é muito mais aberta ao pensamento livre. E você tem mais tempo também, não precisa colocar tudo em duas horas." Pelo jeito, a quarta encarnação de Alex Garland, como homem de TV, tem tudo para durar.

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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