Um smartphone capaz de escanear sua íris em vez de pedir uma senha. Um relógio que se conecta à internet e registra todos os seus passos. Óculos que projetam imagens interativas sobre o mundo real. Carros que dispensam o motorista. Se o noticiário recente de tecnologia por vezes parece saído de um filme ou livro de ficção científica, não é mera coincidência. A ficção científica e a tecnologia são áreas que se retroalimentam, em um namoro saudável que já dura mais de um século.
É difícil precisar o início da ficção científica como gênero literário – a maioria dos especialistas no assunto costuma situar esse marco na segunda metade do século XIX, com autores como Júlio Verne e H.G. Wells e suas narrativas sobre viagens no tempo ou à Lua, submarinos nucleares e até mesmo expedições ao centro da Terra. Desde então, tornou-se lugar comum dizer que a “ficção científica é capaz de prever” descobertas e avanços tecnológicos. Não é bem assim.
Sem previsão. “Escritores como William Gibson e Arthur C. Clarke já disseram que a função deles nunca foi prever nada. Isso é uma tarefa de futurologistas”, diz Adriano Fromer, diretor editorial da Aleph, editora brasileira especializada no gênero. Há quem acredite que a ficção e a inovação sejam frutos da imaginação. “É possível imaginar que escritores seriam ótimos inventores, se preferissem desenvolver tecnologias em vez de escrever”, diz Dave Maass, pesquisador da Electronic Frontier Foundation, entidade norte-americana de defesa de direitos digitais.
No entanto, dizem os especialistas, se algumas previsões parecem acertadas, muitas delas passam longe da verdade – um exemplo citado por Fromer é o livro Neuromancer, de William Gibson. Responsável por cunhar o termo “ciberespaço”, que moldou a internet como conhecemos hoje, o livro imagina um futuro onde todos podem se conectar a uma rede como a internet por meio de… orelhões.
Por conta de “furos” como esse, se tornou comum a colaboração entre cientistas e produtores de conteúdo. Lançado há duas semanas, o game Mass Effect: Andromeda, situado em 2819 e cheio de viagens espaciais, por exemplo, tem uma parceria com a Agência Europeia Espacial. “Se você quer entender como é viver no espaço, precisa conversar com um astronauta”, diz Fabrice Condominas, produtor do game.
A estrada entre essas duas áreas, porém, é uma via de mão dupla: a equipe responsável por Mass Effect, por exemplo, já ajudou astronautas a aprimorarem seus trajes espaciais com base nos figurinos de personagens do jogo. “É uma forma da agência não criar uniformes feios”, brinca o desenvolvedor.
Inspiração. Diversos executivos de tecnologia já declararam publicamente o papel que a ficção científica tem no dia a dia em suas empresas. Para Jeff Bezos, fundador da Amazon, a assistente pessoal Alexa é o seu sonho de ter os computadores de Star Trek virando reais – Bezos é tão fã da saga que até fez uma ponta em Star Trek – Além da Escuridão, de 2016.
No Google, o universo do Sr. Spock também influenciou mentes. “No início do Google, nós pensávamos em Star Trek e dizíamos: esta é a ferramenta de busca definitiva”, diz Ben Gomes, vice-presidente de buscas da gigante de tecnologia, que está na empresa desde 1999. “Hoje, estamos próximos de tornar isso realidade.”
Recentemente, o fundador e presidente executivo do Facebook, Mark Zuckerberg, se inspirou no “mordomo virtual” de Homem de Ferro, o Jarvis, para criar um assistente pessoal para sua casa. Em dezembro de 2016, ele chocou a internet ao divulgar um vídeo em que interagia com o assistente, dublado pelo ator Morgan Freeman. A reação foi tão grande que Zuckerberg teve de dizer que o sistema era apenas uma simulação em desenvolvimento.
Sonho de criança. À primeira vista, é fácil imaginar que as grandes invenções da atualidade não passam de “brinquedinhos” ou sonhos de infância de executivos já bem adultos. Para o escritor britânico Brian Clegg, autor de mais de 20 livros sobre ciência e tecnologia, “todos os grandes homens são aqueles capazes de criar em cima de seus sonhos de juventude”. Mais que isso, porém, a ficção científica é responsável por levar crianças e jovens, desde cedo, a explorar as possibilidades da ciência e tecnologia.
É o caso do Fernando Osório, de 50 anos, professor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo em São Carlos. Ainda adolescente, na década de 1980, Osório tentou criar seu primeiro programa de reconhecimento de voz em um computador Apple II após assistir 2001 – Uma Odisseia no Espaço, do diretor Stanley Kubrick. “Eu queria fazer uma máquina inteligente. Isso me levou a seguir uma carreira toda em inteligência artificial, desenhando carros e caminhões autônomos”, conta Osório. “É um trabalho concreto, mas por trás disso há um sonho de adolescente.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.