Estadão

Guerra deixará legado de rearmamento da Europa e isolamento russo

A invasão da Ucrânia pela Rússia teve o maior impacto na ordem política mundial desde o 11 de Setembro. Para especialistas, a guerra de Vladimir Putin, iniciada há um mês, isolará a Rússia, rearmará a Europa e afetará o equilíbrio geopolítico regional que durava desde o fim da Guerra Fria.

A invasão de Putin levou países europeus a rediscutir a segurança no continente. "A sensação de segurança dos europeus mudou e isso vai reorientar toda a política europeia para os próximos anos", disse o professor de relações internacionais da FAAP, Carlos Gustavo Poggio. "Devemos esperar que os europeus comecem a investir mais em defesa e em armamentos. E já estamos vendo isso acontecer na Alemanha."

Para Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV, a mudança política da guerra será ainda maior do que ocorreu após o 11 de Setembro. "Naquela época, foi uma grande potência que priorizou uma questão que daqui 50 anos será vista como secundária, que foi a guerra ao terror. Ela levou os EUA a atacarem dois países menores, mas não provocou uma mudança de época", disse.

"O conflito que a gente está vendo agora afeta profundamente a relação entre pelo menos duas grandes potências, que são Rússia e EUA, e também afasta a Europa da Rússia. É um grande choque de desglobalização que terá, em termos de vidas afetadas, um impacto muito maior."

<b>Velhas ameaças</b>

Mariana Kalil, professora da Escola Superior de Guerra (ESG), explica que, com o fim da Guerra Fria e a partir dos atentados do 11 de Setembro, as ameaças globais mudaram de configuração. Saíram do conflito convencional entre Estados para o combate a atores não estatais, como terroristas e o narcotraficantes.

A partir de 2011, com a guerra civil na Síria, as ameaças convencionais ensaiaram um retorno, já que Estados como Irã, EUA e Rússia se envolveram indiretamente por meio de atores locais – as chamadas "guerras por procuração". Com a invasão da Ucrânia, esse retorno do conflito convencional é consolidado, quando os Estados voltam a se envolver diretamente na guerra. "É o retorno dessa geopolítica", disse Kalil.

"Hoje quase tudo é diferente de ontem", afirmou o cientista político Johannes Varwick, da Universidade de Hall, à rede alemã Deutsche Welle. "Estamos de volta a uma espécie de confronto de blocos, só que a fronteira do bloco ocidental mudou para o leste em comparação com a época da Guerra Fria. A paz na Europa é coisa do passado e a confiança na Rússia foi completamente destruída. Levará décadas para restaurar a relação entre Ocidente e Rússia."

Segundo Rafael Loss, especialista em política de segurança do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR), também em entrevista à Deutsche Welle, o que está ocorrendo e uma destruição da ordem mundial pós-Guerra Fria. A consequência será o fechamento das alianças militares, como a Otan, que deve cada vez mais evitar novos membros.

"Se toda a arquitetura da aliança começar a desmoronar, e isso parece ser do interesse do Kremlin, colocará muita pressão em países que podem flertar com a proliferação nuclear. E isso teria um segundo e um terceiro efeitos nas relações de segurança regional", disse Loss. "Por exemplo, se a Turquia decidir seguir esse caminho, o que isso significaria para Arábia Saudita e Egito?"

<b>Ucrânia</b>

Se por um lado a intenção de Putin era enfraquecer a Otan, por outro o conflito parece ter resgatado a importância que a aliança militar tinha na Guerra Fria. "Nós temos uma reconstrução da aliança atlântica, que foi criada como uma resposta à União Soviética", afirma Poggio. "A existência de um inimigo comum foi um elemento importante para a união do Ocidente."

Em um mês, o saldo da guerra – além dos milhares de mortos e de 4 milhões de refugiados – é uma surpreendente dificuldade da Rússia em avançar no terreno e derrubar o governo de Volodmir Zelenski. No entanto, ainda que Putin não tenha conseguido conquistar a Ucrânia, a existência do país como um Estado soberano já está fragilizada.

Paramilitares

De acordo com Mariana Kalil, ao aceitar mercenários estrangeiros, Zelenski perdeu o controle dos que estão lutando. O que acontecerá depois, com essas forças estrangeiras no território ucraniano é um mistério.

"Forças paramilitares não obedecem a hierarquia das Forças Armadas nem ao presidente. Elas têm uma vida própria, com objetivos políticos próprios", explica Kalil. "Putin entra na Ucrânia com a desculpa de que é um Estado falido. O Ocidente, ao ajudar a Ucrânia com armamento e forças paramilitares, reforça esse discurso."

Neste cenário, Stuenkel vê enormes dificuldades para um acordo de paz em um futuro próximo. "Nenhum dos dois lados parece ter a capacidade de uma vitória total, mas não há muita disposição em ceder. Zelenski, mesmo se quisesse, hoje não teria como assinar um acordo de paz que prevê ceder parte do território ucraniano. E, para Putin, seria humilhante se retirar agora."

A expectativa é de que a guerra ainda se arraste por muito tempo, em confrontos urbanos. Além da piora na segurança, haverá o aprofundamento da pobreza e de deslocados no mundo. "A guerra na Ucrânia significa fome na África", advertiu o Fundo Monetário Internacional (FMI), que cita o fato de os dois países serem grandes produtores de grãos e fertilizantes.

"O número de pessoas atingidas pela fome, em razão do aumento do preço dos alimentos, será não só maior do que essas guerras anteriores, mas maior do que o impacto da pandemia. Será um evento com consequências que vamos sentir por algumas décadas", completa Stuenkel.

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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