Especial

HISTÓRIA – O Fordinho de Álvaro Mesquita na verdade são dois.

O Fordinho de Álvaro Mesquita na verdade são dois. Um, o sedã de quatro portas, que era seu predileto para os passeios.

  O outro, uma "baratinha", como eram chamados os modelos cupê. Ambos do mesmo ano, 1929, e mesma cor, café com leite, um marrom claro. O cupê tinha, dentro do porta-malas, um banco estofado para duas pessoas. Era o "banco da sogra": seus ocupantes viajavam ao relento.

Os dois carros sempre estiveram impecáveis. E originais. Apenas os freios foram trocados, por segurança. O sistema a disco substituiu o freio a tambor acionado por varões. Álvaro comprava peças de uma empresa americana, e as estocava. Ele próprio fazia algum serviço nos carros, como limpeza de velas e carburador. Para o resto, tinha dois mecânicos de confiança.

A trilha sonora para o cenário dos Fordinhos era música de seresta. Álvaro havia tocado corneta e pistão na banda de Duartina, onde viveu a juventude. Passou para o acordeom, e com ele participou da hoje centenária banda Lira de Guarulhos. Por fim, formou o grupo "Cada Um Faz O Que Pode", com sete outros companheiros, de cordas e sopro (flauta). Surgiam à janela da casa de amigos, com um repertório de jóias como Chão de Estrelas e Luar do Sertão.

A memória da família guarda outras curiosidades. No Natal, os consumidores da casa Comercial Mesquita eram surpreendidos por um Papai Noel que saía tocando acordeão loja a fora. Ia pela calçada, e animava também a porta dos comércios vizinhos. Só quem conhecia sabia que aquele Papai Noel não era contratado, mas o dono da loja.
Uma pessoa de hábitos simples. Um de seus sete netos, Dora Andréa, via provas disso no gosto culinário do avô. Comia o pé de porco da feijoada. Gostava de rabada, dobradinha (bucho bovino), bife de fígado, perna de cabrito (mas também de um bom cappelletti al brodo, ou seja, como sopa). "Ele não comia hambúrguer", espantava-se Dora Andréa.

Toda manhã, oito horas em ponto, abria a loja (o horário depois passou para as nove). Fazia as compras, o fechamento de caixa, assinava cheques e pagamentos. E andava pela loja. Contou para a neta a história de um comerciante em apuros. Os negócios iam mal. Ganhou um patuá, um amuleto, com uma recomendação. Ponha no bolso e ande com ele pela loja toda. Foi assim que, amuleto à parte, descobriu os problemas da casa. Sanou-os e prosperou. "Meu avô me dizia: ponha seu patuá (imaginário) e vá dar uma voltinha", contaria a neta. "E eu ficava andando pela loja, olhando tudo."

Um dos prazeres de Álvaro e Maria Lygia era receber a família em sua chácara, para o almoço de domingo. A chácara, de 30 mil metros quadrados, é um pedaço da fazenda Bela Vista, recebido como herança. Ali, o seresteiro mantinha um comedouro para pássaros – e se comprazia em admirá-los. Instalou um pequeno museu, com objetos que passaram por sua vida: discos e publicações antigas (como jornais sobre acontecimentos históricos), máquinas de escrever e caixas registradoras, moedas, canivetes. Os Fordinhos, deixados para os filhos, foram incorporados ao museu.

Sete anos antes de sua morte, Álvaro foi acometido por mieloma múltiplo, um câncer que se desenvolve na medula óssea e compromete os ossos. "Ele tinha tanto amor à vida, que viveu mais de seis anos sem as complicações da doença", diz o filho Luis. No último mês de vida seu vigor desapareceu, como se estivesse anêmico. Mas compareceu à loja por pelo menos cinco vezes.

Matéria atualizada, publicada pelo autor no Diário do Comércio.

Posso ajudar?