O mundo acompanhou incrédulo o incêndio de grandes proporções que devastou, em setembro de 2018, o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Na tragédia, foi perdida grande parte do seu impressionante acervo de cerca de 20 milhões de itens. "Fiquei tão chocado com as imagens que, no mesmo dia, comecei a rascunhar alguma obra que pudesse transmitir aquele sentimento de perda", disse o músico e dramaturgo Vinicius Calderoni, que inicialmente imaginou uma performance com pessoas lendo a lista de itens perdidos. O projeto não vingou, mas a ideia persistiu até o encenador ser convidado pela Cia. Barca dos Corações Partidos para criar seu próximo espetáculo – nasceu Museu Nacional (Todas as Vozes do Fogo), que estreia nesta sexta, 14, no Sesc Vila Mariana.
"A imagem da destruição pelas chamas sintetizou o que se avizinhava no País", comenta Calderoni, pensando no processo degradante que, nos anos seguintes, tomou conta da produção cultural nacional, estrangulada por medidas governamentais desfavoráveis, além do efeito negativo da pandemia. "Já era uma imagem do abandono que logo ultrapassou o próprio fato."
Ao completar dez anos de atividade, a Barca traz aqui uma de suas principais marcas: a execução ao vivo dos instrumentos musicais por todo o grupo, incluindo os atores convidados que, para Museu Nacional, somam sete. "A música normalmente tem uma relação direta com a encenação, como sempre marcou nosso trabalho", observa Alfredo Del-Penho, que assina a direção musical com Beto Lemos, além de também dividir com ele a criação das melodias das 16 canções inéditas (as letras são de Calderoni). "Mas, desta vez, a trilha consegue ter vida própria, mesmo fora do espetáculo", acrescenta Lemos.
De fato, conhecida pela excelência da trilha sonora de todos os seus espetáculos, a Barca apresenta canções que ajudam a costurar os três atos que compõem o musical. Foi um trabalho colaborativo, como também costuma ser. "Cheguei com 30 páginas que serviram de ponto de partida – a partir daí, as cenas foram se estruturando à medida que o elenco se apropriava da história", comenta Calderoni.
<b>LUZIA</b>
Entre tantas possibilidades de caminhos, ele optou pela divisão nos três atos. No primeiro, a condução da trama é feita por Luzia (Ana Carbatti), a mulher de traços afro-indígenas cujo esqueleto de mais de 11 mil anos foi descoberto em Lagoa Santa (MG), em 1975 – é o mais antigo remanescente humano encontrado no Brasil. "Sobrevivente" do incêndio (o crânio de Luzia resistiu às chamas), ela faz uma espécie de visita guiada pelo edifício interditado pelo fogo, pelos setores do museu e suas peças. "É o momento mais lírico do espetáculo, em que Luzia atua como senhora do tempo e seleciona os eventos que explicam a história daquele prédio", conta Calderoni que, ao destacar mais cenas corais, marcadas por romances, fez homenagem a um de seus mestres, o encenador Aderbal Freire-Filho.
Já no segundo ato, o Museu Nacional se transforma em uma metáfora da memória do Brasil, começando pela origem escravocrata, as oligarquias brancas, os povos originários e os povos negros. "Trata-se de um olhar sobre a formação do nosso povo, com um tom mais paródico e crítico, especialmente em relação à elite branca", continua o dramaturgo e encenador, que imaginou o terceiro e último ato como algo mais realista, sóbrio, sem artifícios, e também mais rápido, com a duração de 10 minutos. "Fica a questão essencial: como reconstruir o museu e o Brasil?"
Não há personagens fixos e o elenco se alterna em dezenas de papéis, sejam pessoas ou objetos. E a música ajuda a amarrar esses três momentos, criando uma unidade para intensidades tão distintas. "Todas as Vozes do Fogo é um estudo de como um país cultiva, armazena e conserva sua memória – e todas as suas implicações simbólicas e concretas", diz Andréa Alves, diretora de produção e idealizadora do espetáculo.
Museu Nacional – Todas as Vozes do Fogo
Sesc Vila Mariana.
R. Pelotas, 141. Tel. 5080-3000.
5ª a sáb., 21h. Dom., 18h.
R$ 40. Até 30/10
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>