Com o alto preço dos combustíveis no Brasil, aumentou na tríplice fronteira a busca por uma opção clandestina e perigosa. Milhares de litros de gasolina saem todos os dias da Colômbia e do Peru em transportes precários para serem vendidos livremente em cidades brasileiras como Benjamin Constant, Atalaia do Norte e Tabatinga, no extremo oeste do Amazonas. O produto estrangeiro, comercializado de forma improvisada em garrafas de refrigerante, chamadas ali de "cocão", custa até R$ 3,39 mais barato do que o nacional e entra no País sem qualquer controle tributário ou de qualidade.
Se antes já era atrativo apelar ao fornecimento informal em razão da dificuldade de acesso a postos tradicionais, com os sucessivos reajustes no preço nas bombas os negócios do mercado paralelo ganharam impulso adicional. Valdeci Barbosa Nunes, de 53 anos, opera um dos pontos clandestinos na esquina da praça central de Atalaia do Norte. Hoje, chega a vender 100 litros por dia. Ele conta que está vendendo bem mais desde que o preço nacional começou a disparar. Somente neste ano, a Petrobras aprovou quatro aumentos.
"A (gasolina) brasileira está muito cara. Aqui só tem um que vende da brasileira. O resto é peruana mesmo e também colombiana", disse o comerciante. Com a alta na procura nos últimos meses, ele afirma que o "cocão peruano" já é sua principal fonte de renda, complementada com uma pequena plantação de melancia no fundo do quintal de casa.
O abastecimento dos tanques de carros e motos do lado brasileiro da fronteira é feito com a ajuda de garrafas de refrigerante e um funil. Os dois litros de um "cocão peruano" valem de R$ 10 a R$ 12. Os do colombiano custam entre R$ 13 e R$ 15, o que deixa o preço do litro do combustível extraoficial oscilando entre R$ 5 e R$ 7,50 o litro. A variação depende da distância entre o porto e o ponto de venda. Também há diferença de preços conforme o volume de combustível na garrafa. Custa um pouco menos o cocão que não é entregue cheio até o limite da garrafa.
Já nas bombas oficiais de gasolina em Benjamin Constant, o preço cobrado é de R$ 8,39 o litro, o que faz a versão do combustível nacional, quando vendido em pontos informais em recipientes tipo PET, alcançar os R$ 18 a unidade de dois litros.
<b>ROTINA</b>
A modalidade de abastecimento improvisado faz parte da rotina dos municípios da fronteira há anos porque poupa o deslocamento até os postos. Com a alta descontrolada do preço da gasolina do Brasil, moradores e comerciantes contam que a opção se consolidou como a preferida e a demanda cresceu. Dos cerca de 40 pontos de venda em Atalaia do Norte, só um insiste em vender o "cocão brasileiro".
Os vendedores dizem que o negócio com combustível contrabandeado dos países vizinhos compensa e eles não são alcançados por fiscalizações. Parte do material clandestino vem em balsas com os demais produtos que abastecem o comércio das cidades da fronteira. Nada tem nota fiscal ou controle alfandegário. A movimentação dos portos de Tabatinga e Benjamin Constant, segundo investigadores federais, é crucial para a lavagem de dinheiro do tráfico de drogas na região. Também por lá saem os peixes raros retirados ilegalmente do Vale do Javari, na Amazônia, região onde foram assassinados o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips.
<b>ATIVIDADE DE RISCO</b>
O produto inflamável fica armazenado dentro das casas em recipientes de plástico. Crianças e adolescentes manuseiam o combustível e trabalham na venda direta aos motoristas. No contexto de extrema pobreza da fronteira, a gasolina ilegal surge como fonte de renda para pessoas muito simples e, ainda, permite que o crime organizado conquiste o respaldo das comunidades locais e dê aparência de ilegalidade a negócios escusos.
A reportagem flagrou a chegada de um distribuidor de gasolina peruana em Atalaia do Norte. A distribuição ocorre sempre pela manhã. O homem, que não quis dar declarações, transporta galões repletos de combustível em uma pequena carroceria, sem nenhuma proteção, e os entrega em casas e em bancas de madeira montadas nas ruas. O distribuidor compra cada litro a cerca de R$ 5 e revende para as bancas na cidade por R$ 6,25. Ao consumidor final, o preço fica por até R$ 7,50.
Em 12 de abril, a prefeitura local publicou um aviso geral à população. Disse que a partir daquela data a fiscalização estaria na rua. "As forças de segurança aumentarão o rigor na fiscalização sobre venda ilegal de combustível nas ruas de Tabatinga. A medida será adotada em razão da constatação de uso de mão de obra em condição análoga à de escravidão e exploração de crianças e adolescentes na venda de forma irregular e sem as devidas precauções de segurança".
O alerta não mudou muito a rotina clandestina na cidade. Cruzar a fronteira para a Colômbia a partir de Tabatinga é tarefa fácil. Uma rua une as duas cidades. Há um posto formal que separa os dois países, mas é possível usar ruas vicinais para chegar a Letícia, do lado colombiano, e comprar a gasolina pagando com a moeda brasileira.
Em Atalaia do Norte, Valdeci Nunes diz também não é importunado. "A Polícia Federal já veio aqui porque essa gasolina peruana é proibida de vender assim. Mas foi há muito tempo atrás, na época que tinha um delegado valente lá em Tabatinga."
<b>LOTAÇÕES</b>
Nos municípios da fronteira com a Colômbia e o Peru, as motos são os principais meios de transporte, sejam particulares ou de moto taxistas. Os deslocamentos de uma cidade a outra, de Atalaia a Benjamin, são feitos de táxis que só partem quando alcançam a lotação. Uma distância de 30 quilômetros pela esburacada estrada Pedro Teixeira separa as duas cidades.
Juliano Galate Júnior, de 30 anos, é um dos motoristas que faz o trajeto. No carro modelo Renault Kwid, ele também abre mão do combustível nacional por causa do preço. "Com a peruana o carro fica mais fraco. Eu coloco sempre a colombiana, porque é mais barata que a brasileira e melhor que a peruana", contou.
Galate Júnior vive a 2,7 mil km de Brasília, de onde o presidente Jair Bolsonaro declarou guerra a Petrobras por conta da alta dos preços dos combustíveis. Nos últimos dias, o presidente passou a falar em CPI para investigar a estatal, enquanto planeja alterar a legislação para conseguir interferir na definição dos preços.
Lá em Benjamin Constant, Galate Júnior prefere ignorar a disputa política e, mesmo sabendo que a gasolina contrabandeada do estrangeiro pode não fazer bem ao motor do seu Kwid. "A diferença é que a (gasolina) brasileira é mais forte." Ele, porém, prefere não pagar mais caro por isso.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>