Em sua última colaboração para o jornal americano <i>The Washington Post</i>, enviada postumamente por seu assistente, um dia depois de sua morte, o jornalista Jamal Khashoggi (1958-2018) – cujo assassinato é dissecado sob múltiplas perspectivas no documentário O Dissidente, atração internacional muito esperada do festival É Tudo Verdade, que a exibe nesta sexta, 9 – escreveu sobre a importância da liberdade de imprensa.
No trecho mais comovente de sua derradeira coluna, ele escreve: "Jornalistas, acadêmicos e a população em geral estavam repletos de expectativa por uma sociedade árabe livre dentro de seus respectivos países. Esperavam ser emancipados da hegemonia de seus governos, das intervenções constantes e da censura à informação. Essas expectativas foram rapidamente quebradas; essas sociedades ou caíram de volta no antigo status quo ou enfrentaram condições ainda mais duras do que antes. (…) O mundo árabe enfrenta sua própria versão de uma Cortina de Ferro, imposta não por atores externos, mas por forças domésticas que lutam pelo poder. Durante a Guerra Fria, a Rádio Europa Livre, que se tornou ao longo dos anos uma instituição crítica, desempenhou um papel importante na promoção e sustentação da esperança de liberdade. Os árabes precisam de algo semelhante".
Ideias como essa custaram a vida do repórter e colunista saudita, que estava em Istambul, na Turquia, em busca de documentos para se casar com sua namorada, a pesquisadora Hatice Cengiz, e foi morto no consulado da Arábia Saudita.
"Existem fatos que dificilmente podem ser contestados, o que costuma acontecer quando se fala de regimes autoritários. Jamal era alguém que estava tentando dizer a verdade. E essa verdade era relativa a um poder instaurado", diz Bryan Fogel, diretor do documentário O Dissidente, ao Estadão, em entrevista via WhatsApp, ressaltando seu empenho em retratar uma história real de brutalidade a partir de uma estrutura narrativa com tanta adrenalina quanto um filme de ação com Sylvester Stallone ou Jason Statham.
"Sou fã de cineastas como David Fincher e Paul Greengrass. Há algo da franquia Jason Bourne aqui, na cadência dos planos. Embora eu esteja tratando de uma situação real, tento criar uma estrutura formal que capture o espectador", comenta o documentarista.
Definido no exterior como um "docu-thriller", The Dissident (título original), que foi indicado ao Bafta (o Oscar inglês, na categoria de melhor documentário), começou sua carreira internacional pelo Festival de Sundance, em Park City, Utah, nos EUA, há um ano, e conquistou o prêmio do Sindicato de Roteiristas da América (WGA).
Sua exibição no É Tudo Verdade acontece às 21h desta sexta, 9, pela plataforma digital Looke, que se tornou o centro nervoso de exibições da maratona nacional de não ficção, que começou na quinta e segue online até o dia 18 de abril.
"Não gosto muito do rótulo documentário, pois sinto que essa palavra confina um pouco o que a imagem conta. Tentei construir O Dissidente como se fosse um thriller, da engenharia de som à edição", explica Fogel, que ganhou o Oscar de melhor documentário, em 2018, pelo longa Ícaro, em que desvenda o escândalo de doping russo, o que levou à expulsão do país dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018. O longa, um autêntico thriller geopolítico, está disponível no cardápio de filmes da Netflix.
<b>Crimes</b>
Revirando os bastidores do caso Khashoggi, o cineasta investiga a ligação do príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohamed bin Salman, no crime. No dia 1º de março deste ano, a ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF) apresentou uma denúncia na Corte Federal de Justiça de Karlsruhe, na Alemanha, por crimes contra a humanidade contra Bin Salman, denunciando a responsabilidade no assassinato do jornalista, morto no consulado saudita em Istambul.
Na denúncia, a organização falava em "perseguição generalizada e sistemática dos jornalistas na Arábia Saudita", envolvendo ainda outras quatro autoridades sauditas de alto escalão no caso. No filme, Fogel expõe o jogo de versões falsas que encobrem a investigação e mostra como Bin Salman controla a informação em seu país, com direito a depoimentos reveladores acerca da política saudita como "quem controla o twitter controla narrativas".
"Tentei retratar essa busca pela verdade como uma experiência cinemática, apoiado em grupos em defesa dos direitos humanos", diz Fogel. "Busco ressaltar a relação de Jamal com sua namorada porque eu quero retratá-lo a partir de uma perspectiva humanizada, para que o espectador entenda quem ele foi, o que sentia."
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>