Cineasta iraniano de origem curda, Bahman Ghobadi tem feito filmes que acrescentam ao título nomes de animais. O italiano Dario Argento também fazia isso em seus primeiros thrillers, mas era para ressaltar a bizarrice das histórias que queria contar – O Pássaro das Plumas de Cristal, O Gato de Nove Caudas, Quatro Moscas no Veludo Azul, etc. Ghobadi, não. Ele busca uma espécie de poesia em Ninguém Sabe dos Gatos Persas, Tartarugas Podem Voar, Um Tempo de Cavalos Embriagados e, agora, O Último Poema do Rinoceronte.
O último, ainda em cartaz nos cinemas da cidade – e Rinoceronte vai iniciar nesta quinta, 9, mais uma semana de exibição -, inspira-se na vida do poeta curdo Saleh Kamangar, que ficou preso por 27 anos na República Islâmica do Irã. À família, o regime dos aiatolás fez saber que ele havia morrido e indicou uma falsa sepultura aonde a ex-mulher e as filhas iam orar. Ghobadi conta essa história de forma não convencional e dedica o filme a dois ativistas por liberdades no Irã – o estudante Sane Jaleh e o (também) poeta curdo Farzad Kamangar. Não é mera suposição que o rinoceronte entre nessa história pelo couro duro, como símbolo de resistência.
Ghobadi enfrenta e resolve de outra maneira o mesmo desafio do chileno Manuel Basoalto em seu filme sobre Pablo Neruda. Como se filma a poesia? Ghobadi cria tessituras e texturas na imagem, usa cores sombrias (e tristes). E na trilha, em off, os poemas de Kamangar são recitados, o do rinoceronte, por exemplo. A voz é da filha do poeta, informam os créditos. Tudo isso é muito bonito, talvez até demais, mas esse rendilhado da imagem mascara outra coisa. A história de resistência traz novidades no contexto do cinema iraniano. Nos últimos anos, o cinéfilo tem acompanhado o calvário do diretor Jafar Panahi, que não pode deixar o país, sob pena de não mais regressar. Panahi, acusado de atentar contra a República Islâmica, foi proibido de filmar, mas resistiu. Tem filmado bastante, de forma clandestina. Ganhou este ano o Urso de Ouro em Berlim por Táxi, no qual faz um motorista confrontado com a realidade iraniana.
Panahi vive uma espécie de exílio interno dentro do país, e isso ocorre muito nas ditaduras. Vozes são caladas, ou calam-se. A vida dos que resistem nunca é facilitada, mas até onde se sabe Panahi não tem sofrido violência física. E O Último Poema do Rinoceronte não só é sobre violência física como revela um aspecto um tanto surpreendente, considerando-se o caráter religioso da República Islâmica. O poeta é preso é torturado pelo antigo motorista que cobiçava sua mulher e que chega a urdir um plano sórdido para possuí-la. O desejo, o ciúme, o adultério e a vingança são elementos presentes na história do novo filme de Ghobadi. Alguém dirá que esvaziam o conteúdo político do filme, mas, pelo contrário, conferem um elemento dramático forte. E absolutamente inusitado na produção do país.
Para o espectador que assiste a O Último Poema, a surpresa maior, no limite, talvez seja ver Monica Bellucci no papel da mulher do poeta. Monica é italiana, e como ela mesma pode ser vista num pequeno mas importante papel de As Maravilhas, belo filme de Alice Rohrwacher também em cartaz. Monica é uma máscara para Ghobadi – de beleza, de dor. E não tem idade. Ora é jovem, ora abatida pelo tempo, mas sempre imponente, não impositiva. Doce como uma madona na tradição católica, mas é uma madona profana. Na cadeia, por um momento, quando lhe tiram a roupa, aparecem os volumosos seios. E se a verdadeira poesia, para Ghobadi, for essa mulher? Monica? Tudo isso não só é novidade como profundamente subversivo num filme crítico sobre o Irã. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.