Estadão

Papa Highirte traz de volta a visão histórica de Vianninha

Na abertura da peça Papa Highirte, o velho ditador Juan Maria Guzamón Highirte (interpretado por Zécarlos Machado) faz exercícios de flexões de braços e pernas antes de tomar o café da manhã. O espectador não vê, apenas ouve o seu esforço.

A imaginação da cena pode até remeter a presidentes recentes que praticam atividades físicas em público, mas foi pensada pelo dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha (1936-1974), há mais de cinquenta anos, lá pelo fim de 1967. O texto de resistentes significados, censurado pelo regime militar, só ganharia os palcos em versão comercial em 1980, com o ator Sérgio Britto no papel-título.

O diretor Eduardo Tolentino de Araújo, responsável pela nova montagem, que estreia nesta sexta, 20, no Galpão do Tapa, rejeita a necessidade de promover a identificação do personagem com políticos atuais, sejam de direita, como Bolsonaro, ou de esquerda, como Lula, da América Latina ou mesmo da Rússia.

"A peça é uma metáfora e não uma transposição da realidade, mas claro que fala desse pai do povo – e tem a ver com o Brasil, que conhece os efeitos do populismo e ainda acredita em um salvador da pátria", define. Os atores Adriano Bedin, Bruno Barchesi, Caetano OMaihlan, Camila Czerkes, Eduardo Semerjian, Fulvio Filho, Isabel Setti e Mauricio Bittencourt completam o elenco liderado por Machado.

<b>OCASO.</b> Papa Highirte é o apelido do governante latino-americano deposto da fictícia Alhambra que encontrou exílio na também imaginária Montalva. Enquanto orquestra uma volta ao poder, ele recorda quando comandava seu país com a imprensa censurada e as torturas nos porões dos quartéis. Em sua reflexão, porém, o velho militar se dá conta de que chegou ao ocaso porque não passou de um fantoche, foi só mais uma peça no tabuleiro de xadrez.

"Há dez anos, eu jamais encenaria essa peça porque seria atacado, considerado fora de época, só que ninguém imaginaria o que estava por vir", afirma Tolentino. "As pessoas precisam entender que a história é cíclica e deve ser revisitada, como fazem os argentinos, que esgotam a repressão militar sob diferentes enfoques no teatro e no cinema."

Enquanto o Brasil vira as costas para o passado, Tolentino lamenta que Vianninha seja ignorado, assim como tantos outros autores que despontaram nos anos de 1960, entre eles José Vicente, Leilah Assumpção e Consuelo de Castro.

A exceção, segundo ele, é Plínio Marcos, constantemente revisitado em Navalha na Carne, até por esta ser uma peça de baixo orçamento. "Daqui a pouco, Nelson Rodrigues também vai cair no ostracismo porque será apontado como machista, preconceituoso e homofóbico e, assim, o teatro aborta ricas possibilidades de discussões dramatúrgicas."

De Vianninha, Tolentino dirigiu Corpo a Corpo (1995) e Moço em Estado de Sítio (1998), além de ter supervisionado uma versão de Mão na Luva (2009), e reconhece na obra do autor uma profunda conexão com o Brasil.

"São textos que falam de homens conscientes e politizados que se vendem ao sistema, como o próprio Vianna que foi para a televisão nos anos 1970 e tantos outros que enxergamos nos períodos de eleições", compara. "Precisamos tratar no teatro e no cinema das milícias, do tráfico de drogas, de sexualidade, de preconceito, mas também é fundamental levantar questões igualmente relevantes que não se enquadram nessas temáticas específicas."

Papa Highirte deveria ter estreado em abril, inaugurando o Espaço LAB da Aliança Francesa, na Vila Buarque. As complicações de um resfriado, entretanto, impediram Zécarlos Machado de subir ao palco e, com o adiamento, uma nova data se tornou incompatível para o local. Tolentino, porém, não mexeu em quase nada na encenação planejada, no formato de arena, para adaptá-la ao espaço de seu grupo, na Barra Funda, que já recebeu outras montagens, como O Torniquete, entre 2018 e 2019.

<b>AMBIENTAÇÃO.</b> Mesmo que o espetáculo seja encenado para, no máximo, 50 espectadores, o que reduz um possível lucro de bilheteria, o diretor acredita que conquistou a ambientação ideal. Além disso, o formato conversa com o histórico de Vianninha no Teatro de Arena e no Teatro Opinião, espaços intimistas.

"A peça ganhou outra dimensão que, se fosse feita em palco italiano, seria exigido um tipo diferente de ilusionismo", justifica Tolentino. "Os atores estão perto do público, podem falar baixo, não existe a coxia e era assim que Vianninha pensava o seu teatro", enfatiza.

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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