Protagonistas em protestos, organizadas têm histórico de participação política

A relação das torcidas organizadas com a política no Brasil começou cinco décadas antes dos protestos registrados domingo passado na Avenida Paulista, quando cerca de 5 mil pessoas participaram de um ato contra o governo Jair Bolsonaro. A mobilização foi autointitulada pró-democracia e antifascista.

Boa parte dos manifestantes pertencia à Gaviões da Fiel, maior torcida do Corinthians, fundada em 1969 para derrubar o então presidente Wadih Helu, que comandou o clube por cinco mandatos seguidos, de 1961 a 1971, em um período marcado pela ditadura militar.

Para este domingo, mais uma vez estão previstas manifestações pelo Brasil, em um movimento que volta a expor à sociedade a ligação entre as torcidas e política. Embora o ativismo desses grupos esteja na gênese ligado ao futebol, historicamente a formação dessa classe sempre esteve ligada à pautas políticas. Questões como a ditadura militar e as eleições diretas foram algumas das bandeiras levantadas no passado.

"A Gaviões surgiu como oposição dentro do Corinthians, que era integrante do regime militar, aliado da Arena (partido) um símbolo da ditadura. Isso faz com que a Gaviões já tenha um posicionamento crítico em seu nascedouro", diz Flávio de Campos, professor de história na USP e integrante do Departamento de História e coordenador Núcleo interdisciplinar de pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (Ludens).

Para a professora da Unicamp e autora do livro Futebol e Violência, Heloísa Reis, a própria rotulação das organizadas como entidades marginais propiciaram o desejo nesses grupos de mostrar um posicionamento político. "As torcidas nasceram no futebol como um movimento de jovens em prol de questões sociais maiores, porém acabaram relacionadas à violência. Ao se sentirem estigmatizadas e acuadas por leis e até pela imagem negativa, as organizadas viram o movimento como uma forma de extravasar."

Um dos atos ligados à política mais marcantes nas arquibancadas brasileiras ocorreu em 11 de fevereiro de 1979, no Morumbi, quando a Gaviões abriu uma faixa com os dizeres "Anistia ampla, geral e irrestrita" antes da partida contra o Santos, pelo Paulistão. A Lei de Anistia foi sancionada em 28 de agosto daquele ano, beneficiou mais de cem presos políticos e permitiu o retorno de 150 pessoas banidas e duas mil exiladas – foi um passo importante para o fim da ditadura no Brasil.

Quem participou, relembra do ato com orgulho. "O povo é quem sofre nesses momentos difíceis. Não existe nada organizado. O que existe é uma revolta com as coisas erradas que acontecem. Tivemos 13 mortes de covid-19 (dentro da Gaviões). Muitos são ambulantes, microempresários que estão passando por dificuldades. E o que o governo está fazendo por eles? Por isso, resolvemos ir para a Paulista", afirmou Chico Malfitani, de 70 anos, um dos 12 fundadores da Gaviões.

Outro episódio ocorreu entre 1982 e 1983, quando a Democracia Corinthiana, instituída por Sócrates, Casagrande, Wladimir no cube teve o apoio das organizadas e culminou com os comícios no Vale do Anhangabaú apresentados pelo narrador Osmar Santos. "Isso tem uma fronteira com aquilo que acontece dentro do clube, de prática democrática, e o respaldo que a principal torcida deu a esse processo, tudo isso em um contexto de transição para a democracia. Logo depois, temos a campanha da diretas em 84", relembrou Flávio.

A partir da década de 1990, o próprio prestígio das organizadas fez com que partidos políticos as procurassem. "É preciso citar o uso político que os partidos fizeram e ainda fazem com as torcidas organizadas. Alguns membros foram cabos eleitorais em eleições como moeda de troca pelo pagamento de caravanas e churrasco, e mais recentemente com a cooptação de que alguns torcedores se tornassem candidatos", afirmou Heloísa.

Mais recentemente, a aproximação entre organizadas e protestos políticos voltou a ganhar força em 2013. O gasto público para organizar a Copa das Confederações e a Copa do Mundo motivou passeatas a partir de junho daquele ano. "A agenda política se articulou com a agenda esportiva, com os megaeventos, como Copa das Confederações, Copa do Mundo, Jogos Olímpicos e Paralímpicos", afirmou o professor da USP.

É neste período que as organizadas começam a caminhar "lado a lado" com partidos políticos, disse Heloísa. "Já tivemos casos de torcida se manifestando em estádio contra impeachment, favorável a políticos, fazendo campanhas…"

No entanto, apesar de diversos movimentos dentro de diferentes torcidas estarem em sintonia sobre pautas políticas, não há um discurso unificado. As organizadas preferem não se associar diretamente ao movimento e pregam que as instituições são neutras. "A maioria dos associados não têm a intenção de ser protagonista em questões políticas. Os movimentos da organizadas não são homogêneos. São associações muito numerosas e variadas", afirmou Heloísa.

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