Padre João Mildner é capelão há 28 anos no Instituto de Infectologia Emílio Ribas. Sobre a batina branca, usa um avental médico e se paramenta diariamente para visitar pacientes da enfermaria e da UTI. É também o ombro amigo dos profissionais de saúde e dos familiares daqueles que estão internados.
Seja nos corredores do hospital ou na pausa para fumar seu cigarro, um vício que carrega da adolescência, alguém sempre o interrompe para uma breve conversa. "Sou ateu e meu melhor amigo é o padre João", disse o infectologista Jamal Suleiman ao encontrar com o religioso na entrada do instituto.
Os dois são parceiros de luta há muito tempo, de outras epidemias. Estavam na linha de frente nos tratamentos contra meningite, aids, h1n1 e agora seguem na batalha para conter o novo coronavírus. Para o padre, cada uma dessas doenças tem seus desafios particulares e o da pandemia da covid-19 é muito claro.
"É uma doença recente e desafiadora. Que muda a nossa visão de solidariedade. Parece que ela veio para trazer mais solidariedade entre as pessoas, particularmente dentro da equipe de trabalho. Vejo que há uma maior compreensão, mais ajuda. Afinal, estamos todos no mesmo barco", comentou.
Os 66 leitos de enfermaria e os 60 de UTI do Emílio Ribas estão praticamente lotados. A taxa de ocupação está próxima aos 95% e não baixa desde o início da pandemia. Isso porque quando não há um paciente de covid, abre-se vaga para pessoas que tenham outras enfermidades. No momento, quase a totalidade novamente é de infectados pelo vírus que já matou mais de 200 mil pessoas no Brasil.
Na semana passada, a reportagem do Estadão acompanhou a rotina de trabalho em um dos principais centros médicos de São Paulo. Lá, médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e nutricionistas trabalham entrosados após praticamente um ano de enfrentamento da pandemia. Como o vírus está no ar, evita-se a entrada no leito de um contaminado. A entrada e saída do quarto é feita seguindo uma série de protocolos.
Supervisor da equipe de UTI do Emílio Ribas há 29 anos, Jaques Sztajnbok contou sobre essa rotina e corrobora o que falou padre João. "Existe uma cumplicidade em relação ao dever a ser cumprido. Essa cumplicidade parece que foi aguçada, acentuada, por força das circunstâncias nos últimos meses. Enquanto parte da população se cansou da pandemia e simplesmente deixou de olhar para o outro, nós que estamos sempre indo em direção ao problema, na linha de frente, nos tornamos mais solidários uns com os outros."
<b>Distanciamento</b>
Suleiman não vê a mãe, de 84 anos, desde janeiro do ano passado. Ela mora em Aquidauana, no Pantanal. O infectologista planejava uma viagem de carro em dezembro, quando os casos voltaram a aumentar no Brasil e, por isso, ele teve de cancelar o encontro. "É preciso ter o mínimo de compaixão. Acho até que é um equívoco usar o termo distanciamento social. O distanciamento é físico. Você pode conversar por vídeo, áudio, por texto. O vírus não é transmitido socialmente, é transmitido por contato físico. Minha mãe aprendeu a mexer no celular e conversamos por vídeo. Ela entendeu a situação e hoje é quem pede para não nos vermos", afirma o infectologista.
As imagens de praias lotadas, de aglomeração das pessoas em festas e da falta de cuidado no uso de máscaras nas ruas deixam os profissionais apreensivos. No hospital, apesar de precisarem tratar de pessoas infectadas, todos se sentem seguros, pois não há uma pessoa que descumpra os protocolos de segurança estabelecidos.
"Medo do vírus nunca tive. Agora tenho medo de não ter condições de cuidar. Esse é o ponto principal. Em abril não havia esse medo, porque a gente via que as pessoas estavam seguindo os protocolos. Pouquíssimos tentavam desconstruir as normas estabelecidas pela saúde. Fui ver agora quantas vagas tinham na UTI. Tivemos quatro altas. Já há outros quatro doentes a caminho. A gente trabalha o tempo todo nesse regime de estresse por irresponsabilidade de outras pessoas", comentou Suleiman.
Na batalha diária de quase um ano contra o coronavírus, a equipe do Emílio Ribas perdeu uma médica e três enfermeiros. Padre João falou sobre o impacto emocional que as mortes tiveram nos companheiros de trabalho. "Muitas vezes o profissional da saúde acaba lidando somente com a finitude do outro. Agora, quando morre alguém que está no nosso dia a dia, faz a gente repensar a nossa vida, nossa fraternidade como equipe de trabalho", destacou.
Sztajnbok acredita que essas perdas, ao mesmo tempo, deram mais força à equipe. "As mortes tiveram poder agregador muito grande. O que acontece aqui talvez só seja comparável à fraternidade que existe entre os militares que participam de uma guerra. Estamos em uma situação de nos expor ao risco, com reconhecimento quase nenhum da população", acrescentou.
<b>Perspectiva</b>
Padre João completará 61 anos daqui a duas semanas, no dia 19. Ele está dentro do grupo de risco e sabe que precisa redobrar os cuidados para trabalhar com infectados. O cigarro, confessa, será difícil de largar. Ainda não pensa em aposentadoria. Mais pra frente, talvez, retorne para descansar em sua cidade natal, Horizontina, no Rio Grande do Sul, terra também de Gisele Bündchen. Ele lembra que conheceu a super modelo bem antes da fama. "Peguei ela no colo." Gisele, com poucos meses de vida, batizou a camisa do então coroinha com xixi. "Mas isso aí é outra história", encerrou o religioso. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>