Há cinco anos, o sírio Samer Al Kadri saiu de casa para nunca mais voltar. Levou uma mala e alguns livros que pôde carregar. Ele estava a caminho da Feira do Livro de Abu Dhabi, uma das principais do mundo árabe, onde sua Bright Fingers tinha um simpático estande. Sabia que não retornaria imediatamente, que estava cada dia mais perigoso viver em seu país, mas não tinha ideia de que aquela era a última vez que via Damasco.
Samer é formado em artes plásticas. Sua mulher Gulnar Hajo é ilustradora. Juntos, eles tocavam a caprichosa editora de livros infantis. Tinham 32 funcionários, os negócios iam bem e o trabalho era reconhecido – um ano antes de ir aos Emirados Árabes, Samer foi convidado a vir à Feira de Frankfurt, com despesas pagas pelos organizadores. Era uma aposta na editora que estava se revelando promissora.
Mas aí veio a guerra, e ela foi se aproximando dos civis. Armas químicas começavam a matar crianças. Bombardeios destruíam cidades e mais cidades. De Abu Dhabi, o casal e as duas filhas foram para a Jordânia. Lá, souberam que um funcionário foi até o estoque da editora e nunca mais voltou. Acompanhavam as notícias à espera do momento certo de voltar. Por um ano e alguns poucos meses, a vida ficou suspensa.
Nesse período, apesar de ter deixado a editora em segundo plano porque era mais urgente encontrar um rumo, Samar voltou à Feira de Frankfurt, e depois à Jordânia de novo. “Essa espera nos destrói. Não sei o que vai acontecer conosco e não sei onde estaremos no ano que vem. É muito difícil viver assim”, disse o editor à reportagem em seu último dia de feira – há três anos, ele não ia a nenhuma e, na sexta pela manhã, voltou para Amsterdã.
Mas, antes de Amsterdã, teve Istambul, já que Damasco ainda era inviável. A família passou os últimos quatro anos lá. O recomeço foi o período mais difícil, ele conta, porque quase todo o dinheiro que tinham foi gasto no ano de espera na Jordânia e os livros que restaram haviam sido vendidos. O dinheiro que sobrou não dava para um mês na Turquia.
“Começamos do zero e fizemos alguns trabalhos freelancers na área de design gráfico e ilustração para várias empresas. O dinheiro foi entrando e fomos reimprimindo e vendendo nossos livros”, conta. Foi assim que uma certa estabilidade chegou para a família e houve espaço para novos projetos.
E, embora com a sensação de que ainda estava de passagem, Samer decidiu que era hora de criar algo. Foi quando teve a ideia de abrir a Pages, que ele descreve como “casa para todos”. É uma espécie de centro cultural misturado com livraria, café, teatro, cinema. Quem quiser ir lá e fazer uma apresentação musical, por exemplo, é bem-vindo e não paga nada – e também não cobra. Os livros estão à venda, mas também podem ser emprestados ou lidos ali mesmo. É possível usar o espaço para reuniões e para o que mais “passar pela cabeça das pessoas”. Circulam por ali pelo menos 15 nacionalidades.
“Fiz isso porque precisávamos de um espaço assim. Nossa comunidade estava crescendo em Istambul e percebi que ninguém se conhecia. É um centro aberto a todos, de responsabilidade de todos. Também atende aos jovens artistas, que não tinham um lugar para se apresentar. Pages não é um negócio para mim, mas uma ideia”, conta o editor, responsável pelo aluguel do espaço.
Tudo começava a melhorar para a família, mas Samer foi a Amsterdã para uma conferência. E não foi autorizado a voltar para casa. Achou que a situação se resolveria, mas nada. Então, pediu asilo à Holanda. A mulher e as meninas demoraram 10 meses para conseguir o visto. O reencontro foi há duas semanas.
Esses 10 meses foram suficientes para ele dar continuidade ao projeto Pages e, há seis meses, abriu uma unidade lá, com patrocínio. O centro vai mudar de endereço em breve, e ele assumirá as contas. No início do ano que vem, o centro abre suas portas em Berlim. E assim vai indo.
Mesmo com todas essas reviravoltas, a Bright Fingers não foi deixada de lado – e cresceu. Há um ano e meio, além de literatura para crianças (serão 12 novos títulos em 2017), ela publica livros para adultos. Já lançou 15 títulos para o novo público. São obras de ficção, política, história.
Livros que ajudam a entender, ou registrar, o que se passa na Síria que não é, para ele, político. “É um crime. É uma revolução contra um regime que destruiu 70% do país e matou mais de um milhão, dos dois lados.”
Muita coisa mudou nesses cinco anos e Samer não volta a Frankfurt com o mesmo entusiasmo de outras feiras e de outros momentos. “É bom voltar, mas não me vejo mais nesse ambiente. Vim conhecer editores em língua inglesa para comprar livros para as livrarias da Pages.” De vez em quando, ele se pega pensando que não vale a pena aprender a língua de onde vive porque logo estará em casa. Mas cada vez mais a ideia de que é preciso encontrar outro lugar para recriar o seu lar o visita.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.