Iniciada em grande parte do País nas últimas semanas, a vacinação contra a covid-19 da população com comorbidades provou uma corrida por atestados médicos e até mesmo suspeitas de fraudes. Possíveis casos de "fura-fila" são investigados em Estados como Amapá e Paraíba, mas também têm sido relatados por profissionais de saúde de outras partes do País.
As comorbidades consideradas prioritárias pelo Plano Nacional de Imunização (PNI) incluem doenças que atingem parte significativa da população brasileira, como diabete e cardiopatias. Porém, em alguns casos, como no da hipertensão, a imunização é permitida só para pessoas que estão em estágios mais avançados da patologia.
Ao todo, a estimativa federal é de que 17,7 milhões de pessoas de 18 a 59 anos se encaixem nesse grupo. A data de início da vacinação da população com comorbidades varia entre os Estados, que têm optado pela liberação aos poucos, geralmente pelas faixas etárias mais altas.
No Amapá e na Paraíba, procedimentos foram instaurados pelos Ministérios Públicos estaduais e o Federal, e seguem em apuração. Detalhes sobre os casos não foram divulgados pela assessoria de imprensa.
Em João Pessoa, a prefeitura anunciou na semana passada que passaria a vacinar apenas pessoas com laudos médicos para comorbidades. O imunizado precisa deixar no posto uma cópia do comprovante, que será encaminhada para apuração por uma comissão municipal e outros órgãos de fiscalização.
A situação no Estado também motivou a publicação de um comunicado do Conselho Regional de Medicina. "É imprescindível que as informações prestadas pelo médico sejam verdadeiras, conforme considera o artigo 80 do Código de Ética Médica: É vedado ao médico expedir documento sem ter praticado ato profissional que o justifique, que seja tendencioso ou que não corresponda à verdade."
No Estado de São Paulo, por sua vez, a prefeitura de Marília informou no dia 13 que identificou que moradores apresentaram receitas de familiares ou falsificadas para conseguirem a imunização. "Estamos com uma equipe capacitada para analisar essas informações", declarou a coordenadora de imunização, Juliana Bortoletto, em comunicado do município.
No Rio, o prefeito de Barra Mansa, Rodrigo Drable (DEM), também relatou ter recebido denúncias de atestados e laudos falsos. Parte delas teria partido de médicos que se recusaram a fornecer o documento indevidamente, mas souberam posteriormente que um colega de profissão fez o oposto.
"Fiquem atentos, senhores médicos, vou denunciar no CRM e no MP. É uma vergonha alguns médicos se prestarem a isso. Como também sempre foi uma vergonha médico se prestar a dar atestado falso para a pessoa faltar serviço", afirmou o prefeito em rede social.
<b>Pressão</b>
Profissionais de outros Estados também têm relatado a pressão de pacientes para a emissão de atestados de comorbidades. Uma médica que atende em UPA de Belém e em UBS no interior do Pará contou: "Por ser recém-formada, muita gente quer se aproveitar para tentar passar a frente da fila da vacina, pedindo receita de medicamento para comorbidade e até mesmo atestado. A procura aumentou depois que liberaram a vacinação para pacientes que têm comorbidades". Ela diz que colegas já receberam proposta em dinheiro para fazer o laudo.
Também há relatos de médicos de Sorocaba, no interior de São Paulo. Um deles, cardiologista, comentou que uma paciente de 51 anos foi ao consultório pedir um atestado para uma doença que não possui, pois alegou que precisava ser vacinada. Segundo ele, a mulher ficou insatisfeita com a recusa e disse que esperava que fosse "mais amigo" e que procuraria um médico "mais compreensivo".
Relatos semelhantes também têm sido postados em redes sociais. "Antigamente, o pessoal queria atestado de boa saúde para praticar esportes e (prestar um) concurso público. Por causa da vacina, hoje a pedida é (por) atestado de doença. Tem como me ver uma asma aí?", desabafou um profissional de saúde do Amapá.
<b>Laudos</b>
Preocupada com a fraude de laudos e receitas para a vacinação de pessoas com comorbidades, a Secretaria da Saúde de São Paulo irá monitorar os números dos registros profissionais dos médicos que assinam os documentos. "No sistema Vacivida há um campo para o CRM de quem assina o laudo de comorbidade. Se percebermos, por exemplo, 300 laudos com o mesmo CRM e o mesmo código de doença, vamos alertar o conselho", disse a coordenadora do Programa Estadual de Imunização SP, Regiane de Paula.
<b>Falta de transparência</b>
Ex-presidente da Anvisa e professor da Universidade de São Paulo (USP) e da FGVSaúde, o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, colunista do <i>Estadão</i>, avalia que a forma como o Plano Nacional de Imunização (PNI) foi desenvolvido impacta hoje na difusão de informação na pandemia. "(O plano) deveria ter sido colocado em consulta pública para que a sociedade soubesse o que estamos propondo e fazendo. O fato de isso não ter sido feito cria um clima de barata voa, de gente com dificuldade para demonstrar ter comorbidade e gente buscando facilidades", comenta Vecina.
A falta de transparência faz, por exemplo, com que as pessoas tenham dúvidas se fazem parte ou não de algum grupo prioritário para a vacina contra a covid-19. "Não resolveria 100%, mas, certamente, se fosse mais transparente, provavelmente teríamos comunicação diferente e o povo tomando atitudes menos ruins. Quando o problema começou no Estado, aí não tem jeito", lamenta. "Está todo mundo perdido, isso é muito ruim."
Para ele, a prioridade neste momento deveria ser dos trabalhadores de serviços essenciais, como de atendimento em supermercados e farmácias, por exemplo, que se expõem mais ao vírus por seguirem com o trabalho presencial em toda a pandemia. "Quem está em home office não deveria tomar nesse momento (mesmo com comorbidade)", avalia o sanitarista.
Já o presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), o também médico Juarez Cunha, acredita que é correta a priorização das pessoas com comorbidades por serem mais propensas ao desenvolvimento de casos moderados e graves da covid-19. "Chama a atenção desde o início da pandemia que pessoas com doenças cardiovasculares e diabete são mais afetadas", comenta.
Cunha considera, contudo, que a lista das comorbidades apontadas no PNI pode deixar de fora pessoas com outras situações de saúde que também estão em risco, como no caso de doenças graves. Além disso, destaca que no caso das pessoas com obesidade mórbida, em que não deveria ser exigida a apresentação de atestado e afins, já que que o Índice de Massa Corpórea (calculado a partir do peso e da altura) pode ser aferido no local.
<b>As comorbidades previstas no grupo prioritário do PNI são:</b>
– Diabete
– Pneumopatias crônicas graves
– Hipertensão arterial resistente, hipertensão arterial estágios 1 e 2 com lesão em órgão-alvo ou hipertensão arterial estágio
– Insuficiência cardíaca (IC): IC com fração de ejeção reduzida, intermediária ou preservada; em estágios B, C ou D
– Cor-pulmonale crônico e hipertensão pulmonar primária ou secundária
– Cardiopatia hipertensiva
– Síndromes coronarianas crônicas
– Valvopatias: lesões valvares com repercussão hemodinâmica ou sintomática ou com comprometimento miocárdico
– Miocardiopatias e pericardiopatias: miocardiopatias de quaisquer etiologias ou fenótipos, pericardite crônica, cardiopatia reumática
– Doenças da aorta, dos grandes vasos e fístulas arteriovenosas: aneurismas, dissecções, hematomas da aorta e grandes vasos
– Arritmias cardíacas: arritmias cardíacas com importância clínica e/ou cardiopatia associada
– Cardiopatias congênitas
– Portadores de próteses valvares biológicas ou mecânicas e dispositivos cardíacos
implantados
– Doença cerebrovascular
– Doença renal crônica: doença renal crônica estágio 3 ou mais e/ou síndrome nefrótica
-Imunossuprimidos: Indivíduos transplantados de órgão sólido ou de medula óssea, pessoas vivendo com HIV e CD4 <350 células/mm3, doenças reumáticas imunomediadas sistêmicas em atividade e em uso de dose de prednisona ou equivalente > 10 mg/dia ou recebendo pulsoterapia com corticóide e/ou ciclofosfamida, demais indivíduos em uso de imunossupressores ou com imunodeficiências primárias, pacientes oncológicos que realizaram tratamento quimioterápico ou radioterápico nos últimos seis meses, neoplasias hematológicas
– Anemia falciforme
– Obesidade mórbida: índice de massa corpórea (IMC) = 40
– Síndrome de down
– Cirrose hepática.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>