A poeta americana Louise Glück é a Prêmio Nobel de Literatura 2020. Sua obra é inédita em livro no Brasil. A cerimônia desta quinta-feira, 8, foi transmitida por streaming da Suécia, onde a Academia – composta atualmente por sete membros – escolhe o laureado.
A escritora foi escolhida "por sua voz poética inconfundível que, com beleza austera, faz universal a existência individual". O presidente do comitê do Nobel, Anders Olsson, disse que falou com a poeta por telefone. "A mensagem chegou como uma surpresa bem-vinda, pelo que posso dizer, tão cedo na manhã." O prêmio deste ano é de 10 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 6 milhões).
Em uma ligação gravada e divulgada pelo comitê do Nobel, feita minutos após o anúncio, Glück disse que não fazia ideia o que o prêmio significava para ela, e foi bem humorada. "Meu primeiro pensamento foi que não teria mais amigos, porque todos eles são escritores", disse. "O prêmio ainda é muito novo, eu não sei o que significa. É uma grande honra. Há, claro, outros laureados que eu não admiro, mas então penso nos que admiro, inclusive alguns muito recentes. De maneira prática, eu queria comprar uma nova casa em Vermont, e agora talvez seja possível. Estou mais preocupada com a preservação da vida cotidiana das pessoas que eu amo. O telefone está tocando o tempo todo."
Quando o representante da Academia pergunta se ela gostaria de indicar um caminho para quem não conhece sua obra ("são muitos", ri a poeta), ela diz que não há. "Os livros são muito diferentes uns dos outros. Eu diria para não ler o primeiro, mas sigo interessada no trabalho seguinte. Averno (2006) talvez seja um lugar para começar, e meu livro mais recente, Faithful and Virtuous Night (2014)." Em seguida, ela pede para desligar e diz que onde está ainda não é nem sete da manhã. "Preciso de um café."
Glück nasceu em 1943 em Nova York, e atualmente vive em Cambridge, Massachusetts. Além de escritora, ela é professora na Yale University, em Connecticut, e mesmo antes do Nobel era reconhecida como uma das poetas mais importantes dos Estados Unidos.
Ela estreou na poesia em 1968 com o livro Firstborn, e entre outros prêmios importantes também levou o Pulitzer, pelo livro The Wild Iris, em 1993, e o National Book Award, em 2014. Dois anos depois, ela recebeu a National Humanities Medal do então presidente dos EUA, Barack Obama.
Louise Glück publicou doze coleções de poesia e alguns volumes de ensaios sobre o assunto. De acordo com a Academia Sueca, seu trabalho é caracterizado por uma busca pela clareza. Entre seus temas, estão a infância, a vida em família, e os sonhos e ilusões são alguns de seus processos na escrita.
"Mesmo se Glück nunca negasse a importância do contexto autobiográfico, ela não deveria ser encarada como uma poeta confessional", diz a Academia Sueca. "Glück busca o universal, e nisso ela se inspira em mitos e motifs clássicos, presentes na maior parte do seu trabalho. As vozes de Dido, Perséfone e Eurídice – a abandonada, a punida, a traída – são máscaras para um eu lírico em transformação, tão pessoal quanto válido de maneira universal."
Em uma entrevista em 2012, ela disse: "Eu aprendi a ler muito cedo, muito jovem, e meu pai gostava de escrever versos burlescos. Então eu e minha irmã começamos a escrever livros muito cedo. Ele os imprimia e nós ilustrávamos, e muitas vezes os textos eram em versos". Ela começou a escrever por si mesma ainda adolescente, e passou a enviar os poemas para revistas, muitas vezes rejeitados. "Mas eu persisti."
Ela mesma se descreveu como uma "adolescente não muito bem sucedida", e que as suas colegas a consideravam estranha. "Tornei-me bastante alheia, e depois passei por uma severa anorexia", mas estava, ao mesmo tempo, determinada a ser artista e professora.
Ao compará-la com outras autoras, a Academia Sueca disse que Glück lembra a poeta do século 19 Emily Dickinson na sua "severidade e falta de vontade de aceitar princípios simples de fé".
O caráter às vezes bem humorado e mordaz dos poemas também foi destacado pelo comitê. O livro Vita Nova (1999) termina com os versos: "I thought my life was over and my heart was broken. / Then I moved to Cambridge" ("Eu pensei que minha vida estava acabada e meu coração partido / Então eu me mudei para Cambridge"). O título do livro remete ao clássico de Dante, que celebra a nova vida ao lado de sua musa, Beatrice.
"O leitor é atingido pela presença da voz e Glück se aproxima do motif da morte com graça e leveza irreparáveis", diz o comunicado da Academia. "Ela escreve poesia narrativa e onírica, relembrando viagens e memórias, apenas para hesitar e pausar para novas intuições. O mundo é emancipado, apenas para magicamente se tornar presente mais uma vez."
A professora associada da Universidade de Oxford, na Inglaterra, Erica McAlpine, disse que Glück "conseguiu se tornar urgentemente contemporânea mas simultaneamente atemporal". "A ocasional desolação da sua voz fala especialmente bem ao nosso momento presente, mas sua poesia sempre foi intimamente conectada com a grande tradição lírica por trás dela", disse.
O presidente da editora americana Farrar, Straus & Giroux, que publica as obras de Glück, disse nesta quinta-feira estar certo de que o Nobel traria sua poesia a muitos novos leitores. "Ela é uma das raras poetas contemporâneas cujo trabalho tem o dom de falar diretamente com os leitores através de sua arte sutil e especial", afirmou.
<b>Poemas de Louise Glück no Brasil</b>
O poeta, tradutor, músico e professor Pedro Gonzaga publicou em 2017 e 2018, no blog Estado da Arte, algumas traduções de seus poemas (veja abaixo).
"Filha de uma família de imigrantes húngaros de origem judaica, Glück é conhecida por uma obra marcada pela precisão e pela economia a fazer contraste com seu tom confessional, criando um estranho distanciamento subjetivo", escreveu Gonzaga. "Outro aspecto importante é um retorno aos temas clássicos, seja pelo culto ao mundo natural, assunto dominante em seu premiado Wild Iris (1992), seja pela retomada criativa de figuras que povoam a mente de poetas e leitores filiados à tradição ocidental."
Sobre a sua obra crítica, outra parcela fundamental do trabalho de Glück, Gonzaga também é elogioso. "A economia e a clareza de suas avaliações, seja na análise de suas memórias, seja sobre os desafios da lírica, em muito lembram essas mesmas qualidades admiráveis em seus poemas. Numa era de politização total dos temas e de guetificação da experiência humana, numa arte que mais parece propaganda de meia dúzia de lemas gastos, suas palavras são água cristalina e fresca no mais desolador dos verões."
Glück se une agora a Toni Morrison e Pearl S. Buck entre as escritoras americanas laureadas com o Prêmio Nobel de Literatura. Em 2016, o também estadunidense Bob Dylan foi o escolhido, numa escolha um tanto surpreendente mas não por isso desmerecida. Glück é a primeira poeta mulher a vencer o Nobel desde Wislawa Szymborska, em 1996.
<b>Leia alguns poemas de Louise Glück</b>
Os dois primeiros poemas foram traduzidos pelo poeta, doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor Pedro Gonzaga para o blog Estado da Arte. O terceiro, do livro The Wild Iris (1992), foi compartilhado pela Academia Sueca.
O dilema de Telêmaco
Nunca consigo decidir
o que escrever
nas lápides de meus pais. Sei
o que ele quer: ele quer
amado, o que por certo
vai direto ao ponto, particularmente
se contarmos todas
as mulheres. Mas
isso deixa minha mãe
a descoberto. Ela me diz
que isto não lhe importa
para nada; ela prefere
ser representada por
suas próprias conquistas. Parece
pura falta de tato lembrar aos dois
que alguém não
honra aos mortos perpetuando
suas vaidades, suas
projeções sobre si mesmos.
Meu próprio gosto dita
precisão sem
tagarelice; eles são
meus pais, consequentemente
eu os vejo juntos,
às vezes inclinado a
marido e mulher, outras a
forças opostas.
*
Parábola da fera
O gato anda em círculos na cozinha
com o passarinho morto,
sua nova possessão.
Alguém deveria discutir
ética com o gato enquanto ele
perscruta o débil passarinho:
nesta casa
nós não exercemos
a força deste jeito.
Diga isso ao animal,
seus dentes já
fundos na carne de outro animal.
*
Snowdrops
I did not expect to survive,
earth suppressing me. I didnt expect
to waken again, to feel
in damp earth my body
able to respond again, remembering
after so long how to open again
in the cold light
of earliest spring –
afraid, yes, but among you again
crying yes risk joy
in the raw wind of the new world.
<b>Polêmicas na Academia Sueca</b>
Os últimos anos foram um escândalo para a Academia Sueca, a instituição que premia o Nobel de Literatura há cerca de 120 anos (foram 117 premiados, e, agora, 16 mulheres).
Em 2017, o marido de uma afiliada foi acusado e depois condenado a dois anos de prisão por abuso sexual, a participação de sua mulher em esquemas de vazamentos de nomes para casas de apostas foi revelada e diversos membros deixaram seus postos na entidade, que foi reformulada.
No ano seguinte, o comitê decidiu não premiar ninguém para que as situações fossem melhores esclarecidas, e o presidente, Anders Olsson, reconheceu em entrevistas o caráter eurocentrista e díspar em gênero e raça do Nobel de Literatura – para então premiar dois escritores europeus, a aclamada polandesa Olga Tokarczuk (2018) e o escritor austríaco Peter Handke (2019), adorado por seus escritos, mas um reconhecido negacionista do genocídio promovida por Slobodan Milosevic na Guerra da Sérvia do início dos anos 1990.
Por conta disso tudo, era esperado que o Nobel de 2020 escolhesse um autor ou autora "acima das polêmicas", e foi o que acabou acontecendo. Nas casas de apostas, as escritoras Maryse Conde (de Guadalupe, no Caribe) e Lyudmila Ulitskaya (Rússia) eram as mais cotadas. Não deixa de ser uma surpresa que a Academia premie outro poeta americano apenas quatro anos depois de Bob Dylan.
Por conta da pandemia da covid-19, o luxuoso e tradicional evento de entrega do Prêmio Nobel não será realizado em Estocolmo em dezembro. No lugar dele, os vencedores vão receber suas honrarias em seus países de origens, em cerimônias transmitidas online. Os vencedores de 2020 serão convidados para a cerimônia em 2021.
Veja a lista dos vencedores do Prêmio Nobel de Literatura desde 2003:
2020 – Louise Glück (Estados Unidos)
2019 – Peter Handke (Áustria)
2018 – Olga Tokarczuk (Polônia)
2017 – Kazuo Ishiguro (Reino Unido)
2016 – Bob Dylan (EUA)
2015 – Svetlana Aleksiévitch (Rússia)
2014 – Patrick Modiano (França)
2013 – Alice Munro (Canadá)
2012 – Mo Yan (China)
2011 – Tomas Tranströmer (Suécia)
2010 – Mario Vargas Llosa (Peru)
2009 – Herta Müller (Romênia)
2008 – Jean-Marie Gustave Le Clézio (França)
2007 – Doris Lessing (Grã Bretanha)
2006 – Orhan Pamuk (Turquia)
2005 – Harold Pinter (Inglaterra)
2004 – Elfried Jelinek (Áustria)
2003 – J. M. Coetzee (África do Sul)
A bibliografia de Louise Glück em inglês
Firstborn – New York : New American Library, 1968
The House on Marshland – New York : Ecco Press, 1975
The Garden – New York : Antaeus Editions, 1976
Descending Figure – New York : Ecco Press, 1980
The Triumph of Achilles – New York : Ecco Press, 1985
Ararat – New York : Ecco Press, 1990
The Wild Iris – Hopewell, N.J. : Ecco Press, 1992
Proofs and Theories : Essays on Poetry – Hopewell, N.J. : Ecco Press, 1994
The First Four Books of Poems – Hopewell, N.J. : Ecco Press, 1995
Meadowlands – Hopewell, N.J. : Ecco Press, 1996
Vita Nova – Hopewell, N.J. : Ecco Press, 1999
The Seven Ages – New York : Ecco Press, 2001
October – Louisville, Ky : Sarabande Books, 2004
Averno – New York : Farrar, Straus and Giroux, 2006
A Village Life – New York : Farrar, Straus and Giroux, 2009
Poems 1962-2012 – New York : Farrar, Straus and Giroux, 2012
Faithful and Virtuous Night – New York : Farrar, Straus and Giroux, 2014
American Originality : Essays on Poetry – New York : Farrar, Straus and Giroux, 2017