Em 1971, Fernando Faro, o Baixo, produziu para a TV Tupi um programa reunindo no palco um trio praticamente impossível de se encontrar à época: os baianos João Gilberto, Caetano Veloso e Gal Costa. Como trazer Caetano? Ele morava na London swinging London, exilado pela ditadura militar com os plenos poderes da força da repressão e no auge de popularidade propiciada pelo milagre econômico e simbolizada pelo general-presidente Garrastazu Médici com radinho de pilha no ouvido, no Maracanã, um ano depois do tri no México.
Mas não é que os ditadores autorizaram um bate-volta do filho de Dona Canô Londres-São Paulo-Londres? Uma concessão, quem sabe, ao momento de glória que os donos do poder achavam estar vivendo, tão inexpugnáveis tinham toda a certeza de ser.
Inimigo mortal de aviões, João Gilberto entrou no automóvel guiado por sua companhia de todas as horas, Otávio Terceiro, e fez o percurso pela Dutra sem em momento algum ultrapassar os 30 quilômetros por hora, velocidade que considera exagerada. No primeiro posto da Polícia Rodoviária, a dupla foi interceptada por um desconfiado patrulheiro.
“Este é João Gilberto, amigo. Estamos indo para São Paulo. Caetano veio da Inglaterra pra gravar com ele e não podemos perder a hora na TV Tupi hoje, à noite”, argumentou Terceiro.
“Cantor, ele?”, perguntou o policial.
” Sim, é João Gilberto”, insistiu Terceiro.
E João, quieto.
“Prove que é cantor”, mandou o policial.
João foi ao automóvel, pegou o violão e deu uma canja exclusiva para o amigo e o patrulheiro, que teve direito a um raro show para plateia de dois no posto rodoviário.
Por isso, o intérprete de Desafinado atrasou, mas, para alívio geral, subiu ao palco, pousou o violão no joelho e entoou: “Foi na Lapa que eu nasci, foi na Lapa que eu me criei, a Lapa também tem a sua igreja, onde eu fui batizado. Um samba, um sorriso de mulher, bate papo de café, eis aí a Lapa”.
Pouco menos de uma hora depois de sua voz afinadíssima e em pianíssimo repetir o samba, eis que, então, de repente, um pé pesado abriu a porta do estúdio com um estrondo.
Do switch, deliciado com o show de direção de Faro, já então meu amigo de infância em Uiraúna e Aracaju, senti que a barra ia pesar, pois um afrodescendente parrudo assomou ao proscênio, dirigiu-se à repórter a que fora acudir, depois de ter fotografado a quarta vítima do Esquadrão da Morte de Fleury para o Diário de S. Paulo, virou-se para a plateia e berrou com um vozeirão de narrador do Jóquei Clube:
“Cinira, quem é o homem? O de paletó, Cascolaque.”
O dito imediatamente sussurrou: “Assim não dá, Waltinho”. E parou de cantar.
Walter Silva Picapau resolveu tudo levando o astro para jogar pingue-pongue. Caetano pegou a raquete e, ao receber a bola levantada e leve, afundou-a no lado oposto da mesa.
O protesto foi um lamento: “Caetano não sabe jogar, Waltinho”. João e Walter protagonizaram, então, um jogo interminável em câmera lenta. E a paz voltou ao estúdio da Tupi.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.