Cacá Diegues tem vivido momentos de euforia. Seu novo longa, “O Grande Circo Místico”, foi selecionado para o Festival de Cannes, o que o levará de novo ao maior evento de cinema do mundo. Mas Cacá também anda com o coração oprimido. Escreveu um belíssimo texto para homenagear o amigo Nelson Pereira dos Santos, que morreu em 21 de abril. Comparou-o à luz do povo brasileiro, que não se apagará jamais. “Nelson foi uma referência fundamental para todos nós (do Cinema Novo).” Além de cineasta visceral, integrou a Academia Brasileira de Letras. Suas inúmeras adaptações – ficções e documentários – o credenciaram a ocupar uma cadeira na ABL. No próprio velório do amigo, Cacá ouviu de acadêmicos que deveria se candidatar à vaga de Nelson na Academia. Seria uma forma de manter o vínculo da ABL com o cinema brasileiro.
E ei-lo candidato, Cacá. “Nunca havia pensado nisso, mas vibrei quando Nelson se candidatou, e foi eleito. Nelson foi um modernista. Adaptou nossos maiores autores, pesquisou a linguagem, deu uma cara ao homem brasileiro na tela. Quando o comparei a uma luz, estava tentando dar conta de sua riqueza humana e artística. Será uma honra, se tiver de sucedê-lo na ABL.” O próprio Cacá assinou diversas adaptações. Mais até que uma adaptação, o novo filme é uma invenção. “O Grande Circo Místico” baseia-se no poema de Jorge de Lima. São 47 estrofes, não contam uma história, mas esboçam uma crônica familiar. Cacá e seu roteirista, George Moura, tiveram de inventar tudo. Desde que se tornou cineasta, no começo dos anos 1960, Cacá integrou quatro vezes a seleção oficial de Cannes, mais três vezes a da Quinzena dos Realizadores e uma vez a da Semana da Crítica. Foi jurado. Cannes e ele têm sido uma história de amor. Cacá se prepara para pisar de novo naquele tapete vermelho. Como roteirista, George Moura participou da montée des marches de Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas, há exatamente dez anos, e o filme venceu o prêmio de atriz para Sandra Corvelloni.
Moura é o autor de teledramaturgia de “Onde Nascem os Fortes”, a supersérie de José Luiz Villamarim, na Globo. Ele já avaliou, para o jornal O Estado de S. Paulo, a diferença entre escrever para cinema e TV. “Aos 50 minutos, um roteiro de filme se encaminha para os finalmentes. Numa série, é só o começo, o tema está sendo esboçado.” E como é criar o roteiro de um poema? “Quando Cacá me chamou, não sabia nem por onde começar. Conversamos muito, e a única coisa de que me conscientizei, rapidamente, é que teria de ser um roteiro poético.” Posto que já estava até no título, tinha de ter um circo. “O toldo deveria abranger o Brasil”, dizia o diretor. Sempre o Brasil, o interesse autoral de Cacá. E Moura: “Para construir uma temporalidade, surgiu a ideia de fazemos coincidir o circo e o cometa Halley em terras brasileiras. Pesquisei e descobri que, nessas duas datas em que o cometa passou pelo Brasil, uma correspondia ao meu aniversário e outra, ao aniversário do Cacá. Não sei o que isso significa, nem se significa. Será mera coincidência?”
O circo, afinal, é místico. Evoca Federico Fellini e essa história do apogeu e decadência de um circo é também a de uma família. “Não pensei especificamente em Fellini, mas ele está entranhado no meu imaginário de cinéfilo, no seu”, diz o diretor. “Mas se tem algo de Fellini, tem também do Lola Montès Max Ophuls, outro gênio.” E tudo converge para um gran finale – um salto sem roupa, sem rede. Mulheres belíssimas, esvoaçando nuas. O efeito deu muito mais trabalho do que Cacá imaginava. Teve de ser refeito. Ele não quer contar os detalhes, porque acha que tiraria a graça, mas está feliz com a repercussão. Quem viu tem viajado na imagem, e no seu enigma. Alagoano, Cacá sempre foi atraído pela literatura de Jorge de Lima. Um grande crítico, Mário Faustino, lhe aguçou ainda mais a sensibilidade pelo poeta. Modernista, formalista, místico, barroco, até surrealista – a obra do autor desafia códigos e propõe desafios. Há quase 50 anos, Cacá já contou outra história do Brasil, por meio de outra família e filtrada pela Rádio Nacional – “Os Herdeiros”. O rádio, a TV, tudo cabe sob o toldo do Circo Místico. Ao repórter, o novo filme fez lembrar o anterior: “É curioso, outras pessoas já me falaram isso, mas não pensei especificamente em Os Herdeiros ao fazer o Circo, mas é possível, não sei. Ainda é cedo para avaliar”, reflete o diretor. “Circo” terá sua gala, em Cannes – fora de concurso -, às 19h do dia 12. Cacá, George Moura, as mulheres, Mariana Ximenes, Vincent Cassel estarão no tapete vermelho. O meneur du jeu, no filme, é Jesuíta Barbosa. Chama-se Celavie. Jesuíta não irá. Ainda grava “Onde Nascem os Fortes”. Como ator, iluminará aquela tela, a maior do mundo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.