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Álbum revê obra de Djavan pela ótica do reggae

Se fosse se deixar seduzir pelo primeiro sopro, Djavan seria do samba. Pois era tudo o que o garoto alagoano parecia saber fazer de melhor naquele A Voz, o Violão, a Música de Djavan, de 1976, quando despencou no Rio solitário, dormindo em praça pública até ser descoberto por João Araújo, pai de Cazuza, que o levou para a Som Livre. Se fosse de seguir o segundo vento, então, Djavan seria de baiões, como o mesmo álbum apontou com Maçã do Rosto. Um achado, o rapaz era fluente em dois idiomas. Mas ainda, se optasse por um terceiro, Djavan seria definitivamente do reggae. Ele sempre esteve lá, em seu mapa genético, sutil, em espírito, embora nunca assumido de forma mais radical. Alheio às expectativas, Djavan optou por ser ele mesmo, um gênero musical em si.

Havia uma razão prática para isso: da forma como veio ao mundo, cheio de ideias difíceis de explicar até aos próprios músicos que queriam acompanhá-lo no início de carreira, procurando e nem sempre encontrando o tempo forte de suas canções, Djavan seria reduzido pelos gêneros, prendendo seu pensamento de liberdade rítmica e harmônica a modelos de composição que acabariam sufocando-o. Era melhor garantir a possibilidade de ter tudo sem precisar excluir uns para firmar outros. E assim, deixar que o tempo confirmasse seu talento e que os fãs fizessem suas leituras.

Uma das mais coesas propostas na descoberta de uma face desses Djavans acaba de sair. Um projeto que começou pelo nome, em um daqueles estalos de segundos que faz tudo vir pronto. Jah-Van. “Eu estava em casa, era domingo. Logo pegamos o violão e começamos a tocar músicas de Djavan que tinham a ver com reggae”, diz Eduardo BiD, produtor marcado por projetos conceituais como Afrociberdelia, de 1996, com Chico Science & Nação Zumbi. Ao lado de Kuki Stolarski e Fernando Nunes, a ideia foi crescendo e os convidados surgindo. O básico: trazer bons nomes para cantar músicas do compositor sob uma sólida base de reggae.

“Encontrei primeiro o Arnaldo Antunes na rua (que canta Sina, com participação de Rincon Sapiência)”, lembra BiD. “Depois, a Fernanda Abreu (que ficou com Azul) andando de bicicleta no bairro.” Eles foram aceitando e o projeto ganhando corpo. Chegaram Criolo, Ivete Sangalo, Black Alien, Seu Jorge, Arnaldo Antunes, Rincon Sapiência, Fernanda Abreu, Assucena. Uma faixa publicada antes das outras mostra a força da ideia de segundos de BiD. Nem um Dia, com Chico Cesar, parece ter sido feita assim, no reggae puro anunciado suntuosamente pelos metais que falam como clarins romanos na introdução típica dos rastas, no baixo movimentado mais nas pausas que nos sons, nas teclas pontuadas sabendo exatamente onde devem aparecer, na guitarra fatiando o contratempo para criar pacientemente a atmosfera mântrica de Jah. Um solo de sax chega a citar – e as citações são uma marca no disco – uma parte de Vapor Barato, de Jards Macalé, e a voz de Chico Cesar está confortável, deitada no sofá.

Os acordes originais são sempre um desafio aos arranjadores que mexem com Djavan. Como manter as longas sequências em uma linguagem de reggae muito menos acidentada, muito mais direta? “Alguns acordes foram retirados”, conta BiD. “Mas tomamos muito cuidado e ele entendeu.” As introduções também ganharam frases novas, o que também não deve ter sido fácil. A centralização de Djavan sobre sua obra é tamanha que há anos ele passou a dar a única palavra sobre todos os processos, da composição (que raramente divide com alguém) à interpretação (idem). BiD conta que sim, chegou um dia em que teve de ir se sentar com o autor para mostrar o resultado.

Djavan, lembra BiD, ouviu a primeira música, a segunda e talvez ainda a terceira com a expressão tensa e enigmática. Aos poucos, foi relaxando e entregando-se a algo inusual em sua vida: suas filhas estavam vestidas por um outro pai. Um produtor havia colocado suas canções em algo que poderia funcionar como um rolo compressor, linearizando suas sutilezas jazzísticas em nome de uma música de elevação espiritual de padrões muito bem definidos. “Olha”, disse depois que o disco acabou. “Vocês acertaram em tudo. E, geralmente, quem toca minhas músicas sempre erra as harmonias.” Mais tarde, comemorando, ele quis saber, segundo BiD: “Quando faremos o volume dois?” “Em breve, já temos material para isso” , diz o produtor.

Ouvir Seu Jorge em Meu Bem Querer leva a pensar sobre uma particularidade. A base escolhida por BiD faz um reggae consistente e a mixagem feita em Londres por Dennis Bovell, ex-baixista da banda Matumbi, um grupo arrasador formado por ele em 1971, no Sul de Londres, não deixa a proposta cair em um pseudoreggae que muitos brasileiros pensam que podem fazer. A questão é cultural, não técnica. Música de groove, de repetição, como a dos nigerianos e jamaicanos, não é o forte dos brasileiros. Eles, em geral, são traídos pelo próprio virtuosismo.

Serviço:
Jah-Van
Vários, sobre obra de Djavan
INDEPENDENTE. R$ 32

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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